Introdução
Os benefícios dos exercícios sobre o sistema cardiovascular estão bem estabelecidos e a atividade física regular é um componente importante para minimizar o risco de várias doenças. Melhorias na CRF se correlacionam a um risco de mortalidade reduzido e a pequenos aumentos na CRF, tais como 1-2 equivalentes metabólicos (MET) se associam a taxas de eventos cardiovasculares adversos consideravelmente mais baixas (10-30%)1,2.
Então, considerando-se os benefícios da atividade física para todos os indivíduos, sem distinção de etnia e gênero, supostamente saudáveis ou reconhecidamente portadores de doenças crônicas, recomenda-se uma avaliação médica antes do início da prática de exercícios e periodicamente3.
Avaliação pré-participação
A denominada avaliação pré-participação (APP) significa a prevenção do desenvolvimento de doenças do aparelho cardiovascular (DCV) e a detecção precoce de enfermidades causadoras de morte súbita (MS)3.
Apesar de incomuns e raras, mortes de jovens atletas por doenças recebem considerável atenção da mídia e galvanizam, de forma intermitente, os debates sobre a triagem cardíaca antes da participação em esportes4. Tanto a American Heart Association (AHA) quanto a European Society of Cardiology (ESC) endossam a triagem pré-participação em atletas, embora haja divergências sobre a melhor abordagem. A AHA recomenda história e exame físico, uma abordagem pragmática e de baixo custo, mas que tem pouca sensibilidade porque a maioria dos atletas é assintomática e o exame físico identifica apenas uma minoria daqueles em risco de morte cardíaca súbita4.
Especificamente para atletas profissionais, a recomendação de APP é consensual entre a AHA5, a ESC6 e a Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE)7, estando igualmente indicada para esportistas não profissionais que realizam atividades em moderada e alta intensidade.
De acordo com recente publicação3, didaticamente, e também pelas diferenças relacionadas à fisiologia, à epidemiologia e aos aspectos clínicos, os indivíduos que devem ser submetidos à APP podem ser classificados em grupos diferentes, de acordo com sua categorização, em esportistas amadores ou atletas profissionais.
- Grupo de esportistas amadores: caracterizado por indivíduos adultos que praticam atividades físicas e esportivas de maneira regular, de moderada a alta intensidade, competindo eventualmente, mas sem vínculo profissional com o esporte.
- Grupo de atletas profissionais: formado por indivíduos que:
Praticam atividades esportivas com o objetivo de melhorar seus resultados/desempenho.
Participam ativamente de competições esportivas.
Têm o treinamento e a competição esportiva como sua maior atividade ou como foco de interesse pessoal. Dedicam muitas horas da maioria dos dias para a modalidade esportiva que praticam, excedendo o tempo dispensado para outros tipos de atividades profissionais ou de lazer.
Esses grupos ainda podem ser classificados quanto à idade em jovens atletas (de 12 a 17 anos), atletas adultos (de 18 a 35 anos) e atletas máster (de 35 anos ou mais).
Anamnese e exame físico
Na APP, como para qualquer avaliação médica bem executada, anamnese e exame físico são fundamentais e devem abordar questões importantes que podem estar relacionadas à morte súbita (MS) cardíaca e a outros eventos indesejáveis, com consequências desastrosas. Uma história familiar detalhada para investigação de cardiopatias ou outras doenças causadoras de MS deve ser realizada: casos dessas condições herdadas na família, história familiar de anemia falciforme ou de outras hemoglobinopatias e procedência de áreas endêmicas para doença de Chagas ou de regiões nas quais há maior prevalência de enfermidades cardíacas congênitas, como descendentes de imigrantes da região do Vêneto, na Itália, onde existe maior prevalência de displasia arritmogênica do ventrículo direito. Deve-se ainda ter especial cuidado com a obtenção de informações sobre o uso de drogas lícitas ou ilícitas que possam ser consideradas como doping ou potencialmente causadoras de MS3.
Entre os sintomas, devem chamar a atenção palpitações, síncope, dor precordial ou desconforto torácico, dispneia aos esforços, tontura/lipotimia, astenia ou qualquer outro sintoma desencadeado pelo exercício. É necessário ter uma sensibilidade apurada para saber avaliar se os sintomas citados podem indicar algum estado patológico ou se refletem meramente a consequência de um treino mais intenso ou uma competição. Quanto à síncope nos esportistas e atletas, se ocorrida durante o exercício e não no período pós-esforço, necessita de uma investigação detalhada para que se descarte um evento arrítmico primário3.
Ao exame físico, merecem destaque algumas condições clínicas, a exemplo de anemia, alterações posturais, focos infecciosos (como os dentários), doenças sistêmicas ou infecciosas graves, asma brônquica, obesidade, diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e ausculta pulmonar e cardiovascular alteradas. Deve-se privilegiar a procura de sinais característicos e relacionados com a possibilidade de uma doença cardiovascular, como a presença de sopro cardíaco, terceira ou quarta bulhas, estalidos valvares, alterações na palpação dos pulsos de membros superiores e inferiores e sinais físicos de síndrome de Marfan ou de outras doenças da aorta (caso da síndrome de Loeys-Dietz), além da aferição adequada da pressão arterial – em ambos os membros superiores na primeira avaliação física3.
Exames laboratoriais
Conforme referido e enfatizado, anamnese e exame físico realizados de forma pragmática e criteriosa, a princípio, afastam ou dispensam a realização de exames laboratoriais, porém a solicitação destes depende das informações obtidas3. Entre os testes de rotina mais relevantes sobressaem hemograma completo, glicemia de jejum, ureia, creatinina, sódio e potássio, perfil lipídico completo, ácido úrico, transaminase glutâmico-oxalacética (TGO), transaminase glutamicopirúvica (TGP), gamaglutamil transpeptidase (gama-GT), bilirrubinas, tempo de protrombina/relação internacional normatizada (TP/INR) e urina tipo 13.
Eletrocardiograma de repouso
A inclusão do eletrocardiograma (ECG) de acordo com as recomendações da ESC melhora a sensibilidade da avaliação para a detecção de doença cardíaca grave, mas está associada a uma taxa de falso-positivos inaceitavelmente alta, em parte por causa da sobreposição entre as manifestações elétricas do treinamento atlético e as cardiomiopatias.
Para jovens atletas com resultados normais de ECG, a ecocardiografia contribui minimamente para o diagnóstico de condições cardíacas graves. Dadas todas as complexidades, a triagem cardíaca de jovens atletas deve ser voluntária, não obrigatória e conduzida por médicos altamente experientes que entendem perfeitamente a adaptação cardiovascular ao exercício intensivo4.
Em relação aos indivíduos classificados como máster, o ECG de repouso é mandatório. Nessa idade, já existe maior prevalência de enfermidades cardiovasculares, sendo a principal delas a doença arterial coronariana (DAC). Na atualidade, existe uma uniformização na interpretação do ECG no atleta por meio da definição de critérios que permitam a distinção entre cardiopatias e achados decorrentes da síndrome do coração de atleta9.
As alterações no ECG do atleta podem ser divididas em dois grupos: comuns e/ou relacionadas com o treinamento esportivo ou pouco frequentes e/ou sugestivas de cardiopatias (tabela 1)3.
Tabela 1 – Alterações eletrocardiográficas fisiológicas versus sugestivas de cardiopatias
Achados fisiológicos em ECG de atletas | Achados patológicos em ECG de atletas |
. Bradicardia sinusal (FC >30bpm) | . Inversão da onda T >1 mm em duas ou mais derivações (exceto em DIII, aVR e V1) |
. Arritmia sinusal | . Infradesnível do segmento ST >0,5 mm em duas ou mais derivações |
. Ritmo atrial ectópico | . Ondas Q patológicas >3 mm ou >40 ms em duas ou mais derivações (exceto DIII e aVR) |
. Ritmo de escape juncional | . Bloqueio completo do ramo esquerdo |
. BAV de 1º grau (PR >200 ms) | . Atraso inespecífico da condução com QRS >140 ms |
. BAV de 2º grau Mobitz I (Wenckebach) | . Desvio do eixo elétrico de -30° a 90° |
. Bloqueio do ramo direito incompleto | . Sobrecarga de átrio esquerdo |
. Critério isolado de voltagem do QRS para HVE | . Padrão de hipertrofia ventricular direita com RV1 + SV5 >10,5 mm e desvio do eixo >120° |
. Pré-excitação ventricular | |
. Repolarização precoce | . Intervalo QT >470 ms, em homens, e >480 ms, em mulheres |
. Elevação em domo do segmento ST acompanhada de inversão da onda T de V1 a V4 em atletas negros | . Intervalo QT <320 ms . Padrão de Brugada . Bradicardia sinusal <30 bpm ou pausas sinusais >3 s . Taquiarritmias atriais . Extrassístoles ventriculares (dois ou mais episódios em ECG de 10 segundos) . Extrassístoles ventriculares pareadas e TVNS |
As figuras 1-8, a seguir, demonstram alguns dos traçados eletrocardiográficos com achados fisiológicos mais frequentes em atletas, conforme listados na tabela 1.
Figura 1 – Bradicardia sinusal
Figura 2 – BAV de 1º grau
Figura 3 – BAV de 2º grau – Mobitz 1
Figura 4 – Distúrbio da condução intraventricular pelo ramo direito
Figura 5 – Critério de voltagem (QRS) isolado para hipertrofia ventricular esquerda (HVE)
Figura 6 – Indivíduo sedentário com diagnóstico de cardiopatia hipertrófica
Figura 7 – Padrão de repolarização ventricular precoce (caucasianos)
Figura 8 – Padrão de repolarização ventricular precoce (negros)
Teste ergométrico
O teste ergométrico (TE) configura uma ferramenta muito útil para indução ou reprodução de sinais e sintomas relacionados aos esforços físicos e inicialmente relatados na APP, uma vez que o estresse desencadeado pelo exercício provoca sobrecarga cardiovascular, com aumento da demanda metabólica e hemodinâmica. As principais informações obtidas no TE são clínicas (sinais e sintomas), eletrocardiográficas (segmento ST-T, arritmias), hemodinâmicas (pressão arterial) e cronotrópicas (frequência cardíaca). Considerando que, acima dos 35 anos de idade, a principal causa de MS em atletas é a DAC, o TE pode ser indicado na avaliação inicial de um atleta amador ou profissional, em qualquer faixa etária, como parte da estratégia de identificação precoce de doença cardiovascular. Da mesma forma, contribui na análise do prognóstico em assintomáticos ou quando há referência a algum sintoma potencialmente indicativo de alguma enfermidade. Indivíduos assintomáticos e sem fatores de risco cardiovascular podem ser liberados sem necessidade do exame, porém, nas demais condições, o TE pode ser recomendado3.
A presença de alterações no ECG de repouso, muitas vezes decorrentes de HVE fisiológica do atleta, reduz a acurácia do método para o diagnóstico de isquemia miocárdica. A análise simultânea de outras variáveis do exame contribui para a avaliação mais global. A referência de palpitação durante a atividade física deve ser investigada por meio do TE com o objetivo de reproduzir, sob monitoração, o sintoma referido na APP3.
Figura 9 – Traçado eletrocardiográfico obtido no pico de esforço durante a realização de TE
Traçado eletrocardiográfico no pico de exercício durante TE, com características normais, em indivíduo do sexo masculino, 38 anos, afastado de atividade física havia 12 meses. O exame tinha o objetivo de preparo do paciente para uma meia maratona, que seria realizada dali a um ano. Assintomático, apresentava antecedentes pessoais de hipertensão arterial sistêmica e dislipidemia, com antecedentes familiares positivos para doença arterial coronariana (pai com infarto do miocárdio aos 54 anos).
Teste cardiopulmonar de exercício
O teste cardiopulmonar de exercício (TCPE) é um método que associa, ao teste ergométrico, a medida da ventilação pulmonar (VE) e a análise do oxigênio consumido (VO2) e do dióxido de carbono produzido (VCO2) durante a realização do exercício, permitindo avaliar a integridade funcional dos sistemas envolvidos com o transporte de gases (cardiovascular, respiratório, muscular, humoral e hematológico). Esses parâmetros, associados à frequência cardíaca (FC), fornecem variáveis que expressam a função e os ajustes cardiovasculares e respiratórios ao longo do exercício, possibilitando elaborar um trabalho direcionado e específico para indivíduos saudáveis fisicamente ativos e atletas, bem como avaliar, pela intolerância ao esforço físico, o grau de incapacidade de cardiopatas e pneumopatas, o resultado de intervenções terapêuticas e o prognóstico para a definição de condutas médicas com maior segurança3.
A inclusão do TCPE na APP tem importância na estratificação de risco individual em determinadas circunstâncias clínicas e para grupos diferenciados de esportistas, especialmente o que inclui os atletas máster, os portadores de doenças cardiovasculares ou pulmonares envolvidos com competição desportiva recreativa e os atletas profissionais3. Trata-se do procedimento de escolha quando se deseja obter medida válida e precisa da condição aeróbica e da determinação da FC nos limiares para fins de prescrição do exercício10,11.
A seguir, a figura 10 ilustra os principais parâmetros obtidos durante o TCPE e a figura 11, o modelo de Skinner modificado, no qual são observadas as três fases de liberação de energia (I, II e III), de acordo com o exercício incremental.
Figura 10 – Parâmetros do TCPE
Tabela e gráficos (a) com os principais parâmetros analisados a cada respiração, expressos em média de 30 segundos durante um TCPE: dióxido de carbono produzido (VCO2), ventilação por minuto (VE), razão de trocas gasosas (RQ), equivalentes respiratórios do oxigênio e gás carbônico (VEVO2 e VEVCO2), pressões expiratórias alveolares finais de O2 e CO2 (PetO2 e PetCO2) e fração expirada de O2 (FEO2); (b) análise gráfica demonstra os limiares ventilatórios utilizados para a prescrição de exercícios.
Figura 11 – Modelo de Skinner modificado
Treinamento | FC | %FC | Velocidade |
Muito leve | 124-133 | 70-75 | 09,0-11,0 |
Leve | 133-142 | 75-80 | 11,0-12,0 |
Moderado | 142-150 | 80-85 | 12,0-13,0 |
Moderado/intenso | 150-160 | 85-90 | 13,0-14,0 |
Intenso | 160-168 | 90-95 | 14,0-15,0 |
Muito intenso (pesado) | 168-177 | >95 | 15,0-17,0 |
A figura acima apresenta o resultado de um TCPE que aplica o modelo de Skinner modificado, no qual se observam as três fases de liberação de energia (I, II e III), de acordo com o exercício incremental, as duas intersecções correspondentes aos limiares de lactato, no caso, teóricos (2,0 ≤ [lactato mmol/L] ≥4,0), os valores de consumos de oxigênio na maior carga de trabalho executada e nos limiares (VO2 máx, LAV e PCR em mL.kg-1.min-1), das FC (bpm) e das velocidades (km.h-1), determinados em TCPE de um homem de 37 anos, praticante de corrida. Observa-se ainda o comportamento da ventilação (VE), dos equivalentes ventilatórios (VEVO2 e VEVCO2) e das pressões expiratórias. Na prática, tendo como base as frequências cardíacas e as velocidades máximas e dos limiares (expressas na tabela), pode-se elaborar uma planilha de treinamento para corredores com cinco sessões na semana, distribuídas em cinco dias, com duração de 60 a 90 minutos cada e com intervalo de dois dias para descanso. Nessa programação, alternam-se treinos de intensidade mais leves, no primeiro e terceiro dias, caracterizando um retorno às atividades e manutenção do ritmo de trabalho, com frequências cardíacas em torno daquela aferida no LAV e acima dele, porém sem atingir os valores de FC do PCR, ou seja, com trabalho realizado nas zonas de intensidade “leve e moderada”, essencialmente aeróbico quando executado imediatamente abaixo do LAV ou na faixa que podemos denominar anaeróbia compensada, na qual ainda ocorre o tamponamento isocápnico. No segundo e quarto dias de treinamento, entram atividades mais intensas, com 60 minutos de duração, que podem ser consideradas “treinamentos de aprimoramento/qualidade”, em que se alternam períodos de trotes na zona de leve intensidade com exercícios intensos, no segundo limiar ou acima dele, porém com duração não superior a 20 ou 30 minutos por etapa. Segue-se, então, intercalando um dia de descanso e um treinamento de fim da semana, o quinto dia, com período mais prolongado (90 minutos) e trabalho intenso (no segundo limiar ou próximo dele).
Considerações iniciais
As recomendações da tabela 2 levam em consideração a formulação de estratégia investigativa de triagem populacional. Atualmente, associações e conselhos dirigentes de atletas profissionais possuem protocolos próprios. A APP, baseada em consulta clínica inicial e ECG de 12 derivações, permite a identificação dos atletas sob maior risco de MS3.
Tabela 2 – Recomendações segundo faixa etária e nível competitivo3
Lazer | Amadores | Profissionais | |||
Criança/adolescente | Av. inicial + ECG 12D | Av. inicial + ECG 12D | Av. inicial + ECG 12D | ||
18-35 anos | Av. inicial + ECG 12D | Av. inicial + ECG 12D | Av. inicial + ECG 12D | ||
35-59 anos | Av. inicial + av. risco DAC + ECG 12D + (considerar teste funcional) | Av. inicial + av. risco DAC + ECG 12D + (considerar teste funcional) | Av. inicial + av. risco DAC + ECG 12D + (considerar teste funcional) | ||
>60 anos | Av. inicial + ECG 12D + teste funcional | Av. inicial + ECG 12D + teste funcional | Av. inicial + ECG 12D + teste funcional | ||
Holter
O holter é o sistema de monitorização eletrocardiográfica ambulatorial prolongada mais utilizado na prática clínica, com o qual se consegue registrar, de forma contínua, todos os batimentos cardíacos durante 24 ou 48 horas, independentemente da atividade exercida pelo paciente. Na prática, o exame fornece informações sobre o ritmo cardíaco básico, a presença de bradicardia, pausas, arritmias transitórias, curva de frequência cardíaca, identificação de alterações transitórias da repolarização ventricular, como isquêmicas, padrões sugestivos de repolarização ventricular precoce, mudanças do intervalo QT, padrões eletrocardiográficos característicos de Brugada ou sugestivos de canalopatias e outras. Trata-se de uma ferramenta com bastante utilidade na identificação de alterações eletrocardiográficas responsáveis por morte súbita, sejam elas indiretamente sugeridas na APP como sinais ou sintomas que podem ser percebidos em repouso, sejam desencadeadas por algum esforço físico.
Figura 12 – Traçado eletrocardiográfico obtido em holter de 24 horas demonstrando pausa de 4,4 segundos
Traçado eletrocardiográfico obtido em holter de um indivíduo do sexo masculino, praticante de corrida havia dez anos, com treinos para maratona e ultramaratona nos últimos seis anos (de 80 a 100 km por semana) antes do exame. Referia “sensação de tontura momentânea”, episódica durante a vigília, de curta duração, sem relação com esforços físicos ou treinamento e sem outros fenômenos acompanhando o quadro. O holter de 24 horas demonstrou frequência cardíaca média de 55 bpm, ectopias ventriculares uma vez ao dia, ectopias supraventriculares três vezes ao dia e 20 pausas maiores que 2,5 segundos de duração, tendo sido a maior de 4,4 segundos, em vigília.
Ecodopplercardiograma
Não há dúvidas quanto à utilidade e à relevância do exame ecodopplercardiográfico para o diagnóstico e o acompanhamento de alterações morfológicas cardíacas decorrentes de alterações fisiológicas do coração de atleta (hipertrofia) ou de doenças cardíacas de natureza congênita/hereditária ou, ainda, adquiridas.
Na APP, de acordo com os dados obtidos, a avaliação ecocardiográfica complementar torna-se fundamental, especialmente pela possibilidade de diagnosticar algumas condições implicadas em MS do atleta, como a cardiomiopatia hipertrófica, miocardites, doenças valvares, algumas formas de doença das artérias coronárias e outras12,13. As informações integradas pelo ECO, como o padrão e a distribuição da hipertrofia, o espessamento parietal, o tamanho das cavidades e a avaliação da função diastólica pelo Doppler tissular, são fundamentais na diferenciação entre hipertrofia do coração de atleta e da MCH14,15. Vale ainda ressaltar a importância do estudo ecodopplercardiográfico associado ao esforço físico em situações nas quais verificar a função cardíaca durante o exercício pode auxiliar o diagnóstico e a conduta, como ocorre nos pacientes com miocardiopatia hipertrófica. As imagens que se seguem ilustram algumas das características ecocardiográficas que são encontradas nos atletas e permitem o diagnóstico diferencial com cardiopatias.
Figura 13 – Hipertrofia simétrica fisiológica do atleta (A) e hipertrofia na CMH (B)
Figura 14 – CMH: gradiente ventricular de pressão em repouso e exercício
Figura 15 – Ecodopplercardiograma demonstrando o fluxo transmital e o Doppler tecidual em atleta (A) e em paciente com cardiomiopatia hipertrófica (B)
Medicina Nuclear
Sabe-se que a principal causa de MS em atletas acima de 35 anos é a doença arterial coronariana (DAC), silenciosa e não identificada simplesmente por história ou exame físico na APP. Com frequência, o ECG de repouso do esportista mostra alterações sugestivas de isquemia miocárdica (segmento ST), que, no entanto, um teste ergométrico não define se decorrentes de isquemia verdadeira ou de características presentes no ECG desses indivíduos.
A cintilografia de perfusão miocárdica associada ao teste ergométrico ou ao teste cardiopulmonar de exercício tem importante papel na verificação da origem dessas alterações16.
Para retorno à atividade física após evento ou tratamento realizado, o teste cardiopulmonar combinado à cintilografia miocárdica pode auxiliar a investigação de isquemia na carga de treino programada de forma individualizada.
Nas figuras a seguir, destacamos quatro situações em que as imagens da Medicina Nuclear complementaram a investigação da APP e possibilitaram um correto diagnóstico e conduta para cada caso.
Figura 16 – Ex-atleta hipertenso, de 58 anos, com o desejo de voltar a praticar atividade física. Assintomático. Pai havia tido infarto aos 46 anos. Teste de esforço máximo com alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia. O teste cardiopulmonar associado à cintilografia foi realizado. Não se observou isquemia na cintilografia com radiofármaco injetado após o segundo limiar. A determinação do VO2 máximo e dos limiares ventilatórios auxiliou a programação de atividade física individualizada
Figura 17 – Ex-atleta hipertenso, de 58 anos, com o desejo de voltar a praticar atividade física. Assintomático. Pai havia tido infarto aos 46 anos. Teste de esforço máximo com alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia. O teste cardiopulmonar associado à cintilografia foi realizado. Não se observou isquemia na cintilografia com radiofármaco injetado após o segundo limiar. A determinação do VO2 máximo e dos limiares ventilatórios auxiliou a programação de atividade física individualizada.
Figura 18 – Atleta máster de 52 anos, diabético, apresentando diminuição da capacidade funcional para a prática esportiva habitual. Negou outros sintomas. Teste ergométrico com frequência cardíaca submáxima não atingida, sugestivo de isquemia. A cintilografia mostrou importante isquemia nas paredes anterior e anterosseptal
Figura 19 – Esportista, 43 anos, assintomático, realizando avaliação pré-participação na São Silvestre. Teste ergométrico prévio sugestivo de isquemia. Cintilografia normal.
Tomografia computadorizada
A tomografia computadorizada (TC) do coração pode fornecer informações sobre a função ventricular global e regional, além dos valores de volumes e massas ventriculares, embora o objetivo principal desse exame, habitualmente, seja avaliar as artérias coronárias.
A TC do coração para avaliação funcional deve ser indicada em situações de exceção, como em pacientes com contraindicações para ressonância magnética e que apresentem limitações técnicas ao ecocardiograma, uma vez que o exame utiliza radiação ionizante.
A análise das artérias coronárias inclui, essencialmente, a apreciação desses vasos em vários tipos de reconstrução, classificando-se os diferentes territórios como isentos de obstruções e com estenoses leves (até 40%), moderadas (41-70%) ou graves (>70%). Ainda não há consenso se o grau de estenose em percentual de redução da luz arterial deve ou não ser quantificado, visto que esse tipo de estudo pode estar sujeito a imprecisões, porém a TC permite caracterizar parte dos componentes das placas e classificá-las como não calcificadas, calcificadas ou mistas, bem como mostrar ateromas com heterogeneidade de atenuação e visualizar remodelamento positivo ou negativo e presença de trombo luminar.
A APP em atletas com idade superior a 35 anos acarreta grande preocupação, pois, nessa população, a MS relacionada ao esporte, apesar de rara, decorre de aterosclerose coronariana. Embora a angiotomografia coronária (ATC) seja mais indicada em atletas com TE positivo e alto risco clínico, também pode ser útil na avaliação de atleta máster com um TE anormal e/ou sintomas clínicos, envolvidos em esportes competitivos. Variáveis como idade, sexo, presença de sintomas e avaliação do escore de risco clínico podem ajudar os médicos do esporte e cardiologistas a decidirem se solicitam ou não uma ATC17.
Figura 20 – Angiotomografia coronária (ATC)
Figura 21 – Angiotomografia coronária com lesão crítica da artéria descendente anterior
Figura 22 – Cavidades cardíacas analisadas pela TC
Figura 23 – TC do coração de um maratonista de 37 anos
Ressonância magnética
A ressonância magnética permite a análise morfológica, dinâmica e tecidual, bem como a caracterização tecidual, demonstrando a presença de fibrose, aspecto fundamental para distinguir o coração com hipertrofia adaptativa da hipertrofia patológica. No caso de atletas com suspeita de cardiopatias, a importância do diagnóstico é ainda maior diante da necessidade de interromper as atividades físicas competitivas, mesmo que temporariamente, ou de reduzir seu nível e intensidade, sejam elas realizadas profissionalmente, sejam elas realizadas de modo amador, para tentar minimizar o risco de MS. Por outro lado, deve-se evitar a suspensão desnecessária do exercício, pois isso implica elevado custo social e impacto bastante negativo na qualidade desse grupo de indivíduos. As principais causas de MS em atletas, que devem ser investigadas a partir de uma APP bem executada, estão discriminadas na tabela abaixo3. A seguir, observam-se também algumas imagens de RM em atletas.
Figura 24 – Futebolista com síncope e espessura miocárdica aumentada
Figura 25 – Jogador de basquete profissional com queixa de palpitações e história de morte súbita na família
Figura 26 – Jogador de tênis com palpitações e cansaço após quadro febril
Em tempos de pandemia de Covid-19, diante da contaminação de um grande número de atletas que vem testando positivo, a maioria assintomática ou oligossintomática, que cumpre as exigências da Vigilância Sanitária, porém retorna às suas atividades o mais rapidamente possível, devemos estar atentos quanto aos efeitos nocivos e ao comprometimento cardiovascular causados pelo SARS-CoV-2. Nesse contexto, vale lembrar que a miocardite é uma causa significante de MS em atletas competitivos (5-22% casos) e pode ocorrer com função ventricular normal18.
Diante da constatação por RM de comprometimento cardiovascular em pacientes recuperados de Covid-1919, em recente estudo20 os autores investigaram o uso desse método para detecção de processo inflamatório miocárdico em atletas competitivos recuperados que testaram positivo para o SARS-CoV-2, com o intuito de identificar alto risco para o retorno às atividades físicas. Em 26 indivíduos estudados, encontraram quatro (15%) com imagens sugestivas de miocardite e oito (30,8%) com realce tardio com gadolínio, sem elevação de T2, e alteração sugestiva de lesão miocárdica prévia. Esses resultados sugeriram que a RM pode representar uma excelente contribuição na avaliação da presença de miocardite em atletas recuperados de Covid-19 e ajudar a orientar cuidadosamente o retorno às atividades competitivas, de acordo com as orientações das diretrizes3.
Avaliação genética
Algumas das doenças cardíacas reconhecidamente responsáveis por MS de atletas e/ou esportistas em idade inferior ou superior a 35 anos (condições que geram arritmias e miocardiopatias) estão associadas a alterações genéticas hereditárias.
Embora testes genéticos tenham sido desenvolvidos e contribuam para a confirmação diagnóstica e para aconselhamento genético familiar, esse tipo de avaliação não é considerada rotina, mas se justifica, e deve ser realizada, diante de uma história familiar com indícios ou suspeitas de doença cardíaca hereditária e na presença de características fenotípicas marcantes, sugestivas desse mesmo tipo de doença21,22. Em nosso meio, os seguintes exames genéticos estão disponíveis e corroboram o esclarecimento diagnóstico nessas situações:
Considerações finais
Considerada um importante marcador de risco, a APP deve ser obrigatória para praticantes de atividades físico-esportivas por possibilitar a detecção de alterações cardiovasculares que predispõem à MS. Apesar das diferentes recomendações internacionais, existe um consenso de que todo atleta deve realizar, necessariamente, história clínica pessoal e familiar, exame físico e ECG de 12 derivações, complementando a investigação com outros testes, de acordo com o grau de suspeição. Portanto, a utilização de outras ferramentas diagnósticas, ou seja, métodos laboratoriais, gráficos, de imagem, invasivos ou não, deve obedecer a critérios clínicos e evidências científicas estabelecidas na literatura, em função dos achados da APP3.
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Consultoria médica
Dr. Antonio Sergio Tebexreni
[email protected]
Dr. João Manoel Rossi Neto
[email protected]
Dra. Paola E. P. Smanio
[email protected]
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