Da história à minuciosa investigação de marcadores sorológicos, incluindo o apoio da imagem, como investigar essa doença insidiosa que permanece assintomática por longos períodos
Entre as doenças hepáticas autoimunes, a colangite biliar primária (CBP), também denominada colangite crônica destrutiva não supurativa e anteriormente chamada de cirrose biliar primária, é uma condição crônica, de etiologia desconhecida, que atinge principalmente as mulheres – em 95% dos casos, com idade superior a 30 anos. Caracteriza-se por destruição progressiva, imunomediada, dos ductos biliares intra-hepáticos de pequeno e médio calibres, com consequente inflamação portal e fibrose. A colestase é o sinal que chama a atenção.
Autores sugerem que ocorre uma interação de determinantes genéticos e ambientais que induzem o fenômeno de colangite crônica, além da presença de fatores de risco para o desenvolvimento da CBP, a exemplo de história pessoal de infecções urinárias de repetição, de tabagismo e de uso de terapêutica hormonal de substituição, bem como história de familiar de primeiro grau com CBP. Observa-se a presença de outra doença autoimune concomitante, como esclerodermia ou tiroidite, em até 20% dos indivíduos. Ademais, a sobreposição de colangite com hepatite autoimune é descrita na literatura em 2-20% dos casos.
Cerca de metade dos pacientes com CBP é assintomática ao diagnóstico. Os sintomas mais precoces incluem prurido e fadiga, sendo raros os casos com evidências de doença hepática avançada e complicações de hipertensão portal no início da doença. Um dos mais característicos sintomas da CBP, o prurido pode ser localizado ou difuso, mais intenso à noite e muitas vezes incapacitante, além de poder ocorrer por meses ou anos antes da icterícia. Osteoporose, hipercolesterolemia e hiperpigmentação cutânea configuram as manifestações extra-hepáticas mais comuns.
Vale ressaltar que o prurido, em conjunto com condições como xantomas, xantelasmas e escurecimento da pele, não raro leva o indivíduo a consultar-se inicialmente com o dermatologista. Com frequência, os exames bioquímicos para avaliar a função hepática são os primeiros que esse clínico solicita e, a partir dos resultados, a investigação continua com a pesquisa de anticorpos, com exames de imagem e com o estudo histopatológico.
Tudo começa com a bioquímica
Em relação aos testes bioquímicos comumente utilizados para a avaliação da função hepática, o achado laboratorial mais observado na CBP é a elevação da fosfatase alcalina, ao redor de três a quatro vezes o limite superior da normalidade, muitas vezes associada ao aumento do colesterol total, visto em 80% dos pacientes.
Além dessas alterações, observa-se elevação dos níveis séricos da gamaglutamiltransferase (GGT) e de bilirrubina direta (não mais que 5 mg/dL) e aumento discreto das transaminases (menos que quatro vezes o limite superior da normalidade). O predomínio de níveis elevados de fosfatase alcalina e GGT é importante para diferenciar a CBP da hepatite autoimune. A concentração de albumina e o tempo de protrombina costumam estar normais ao diagnóstico, podendo mudar durante o curso da doença.
Imunofluorescência indireta em corte de rim de rata evidencia anticorpos antimitocôndria.
Marcadores sorológicos
Anticorpos antimitocôndria
A pesquisa de anticorpos antimitocôndria (AMA) tem bastante utilidade nesse contexto, uma vez que tais marcadores são considerados específicos e muito sensíveis, a ponto de estarem presentes em mais de 95% dos portadores da CBP, podendo anteceder suas manifestações clínicas por anos. O principal antígeno mitocondrial contra o qual os autoanticorpos se dirigem é a subunidade E2 do complexo da piruvato desidrogenase (PDH). A apresentação clínica e a progressão da doença se assemelham entre pacientes AMA-positivos ou AMA-negativos.
Como triagem, a pesquisa de AMA pode ser realizada por imunofluorescência indireta (IFI) em tecidos de roedores, um método bastante sensível. Consideram-se significativos títulos superiores ou iguais a 1:160. Em títulos baixos, porém, esses anticorpos são encontrados em até 30% dos portadores de hepatite autoimune e, com frequência variável, na síndrome de Sjögren, na síndrome Crest, na esclerose sistêmica difusa, no fenômeno de Raynaud idiopático e em tiroidites.
O resultado positivo da investigação por IFI deve ser corroborado pela pesquisa de anticorpos contra o complexo PDH, considerado marcador de CBP, por técnica imunoenzimática. Convém ressaltar que os níveis de anti-E2-PDH não se relacionam com a gravidade e a com duração da doença.
O Western blot, por sua vez, permite identificar anticorpos contra o antígeno E2-PDH e contra outros antígenos mitocondriais relevantes, como a fração E2 da 2-cetoácido desidrogenase de cadeia ramificada (52 kDa), a fração E2 da oxoglutarato desidrogenase (50 kDa) e a subunidade E1 e a proteína de ligação da PDH. Um estudo recente mostrou que 13% dos indivíduos com CBP tiveram teste negativo pela IFI, mas positivo pelo Western blot. Já em 6% dos portadores de CBP com reatividade antimitocôndria, não houve reconhecimento do tradicional autoantígeno E2-PDH (Dig Liv Dis 2005, 37: 108) .
Considera-se específica para CBP a presença de anticorpos contra enzimas do complexo 2-oxoácido desidrogenase, razão pela qual o Western blot tem sido usado nos casos com AMA negativo, embora sua presença seja também descrita nas hepatites C e autoimune.
Anticorpos antinucleares
Além dos AMA, deve-se avaliar os anticorpos antinucleares (ANA), observados em 30-50% dos pacientes, não raro com padrões associados à CBP, o que pode ser de utilidade sobretudo nos casos AMA-negativos. Nesses indivíduos, convém realizar a pesquisa, por Elisa, dos autoanticorpos anti-Sp-100, que se associam ao padrão de múltiplos pontos nucleares, e daqueles voltados contra a glicoproteína gp210, relacionados ao padrão de envelope nuclear, os quais podem contribuir decisivamente para o diagnóstico da doença – o anti-Sp-100 está presente em até 40% dos casos de CBP e em outras condições clínicas, enquanto o antiglicoproteína gp210 ocorre em 10-41% dos pacientes com CBP, com alta especificidade. A positividade do anti-gp210 fornece ainda informação prognóstica, pois se correlaciona com um curso mais acelerado e agressivo da afecção, pior prognóstico e morte por falência hepática. Existem também referências de sua relevância como marcador das fases iniciais da CBP e de sua associação com artropatia inflamatória.
Na literatura, há relatos de outros anticorpos na CBP. O anticentromérico é encontrado em até 30% dos casos e visto como marcador prognóstico, relacionado com maior risco de desenvolvimento de esclerose sistêmica e de hipertensão portal e suas complicações.
Enhanced Liver Fibrosis: uma alternativa não invasiva para avaliar fibrose hepática
O escore Enhanced Liver Fibrosis (ELF) combina as dosagens séricas de biomarcadores ligados ao metabolismo e à degradação da matriz extracelular: ácido hialurônico (HA), inibidor tecidual de metaloproteinases de matriz-1 (TIMP-1) e propeptídeo aminoterminal do procolágeno tipo III (PIIINP). Quando em concentrações séricas aumentadas, o ELF reflete fibrose tecidual, sendo útil, portanto, na avaliação do grau de fibrose hepática.
A dosagem dos marcadores séricos que compõem o ELF é realizada individualmente por ensaio imunométrico quimioluminescente e, a partir dos seus valores, obtém-se o escore mediante um algoritmo matemático – altas concentrações de cada marcador resultam em valor elevado, que se associa a graus progressivos de fibrose hepática.
Em pacientes com encontro isolado de AMA ou outros autoanticorpos, na ausência de evidência clínica ou enzimática de CBP, um escore ELF aumentado pode indicar existência de lesão tecidual subjacente, recomendando-se investigação mais intensiva para elucidar o diagnóstico.
A colangiorressonância, além de favorecer a investigação da etiologia da colestase, ajuda a diferenciar a CBP, na qual não há alterações dos ductos biliares, da colangite esclerosante primária (CEP), cujos achados dependem do estágio da doença. Alterações precoces na CEP incluem estenoses nas vias biliares intra-hepáticas anelares e curtas, distribuídas randomicamente, que se alternam com segmentos normais ou pouco dilatados, com a clássica aparência de “colar de contas”. À medida que a doença avança, as estenoses se tornam mais longas e os ductos biliares periféricos deixam de ser visualizados, assumindo um aspecto de “árvore podada”. Posteriormente, desenvolvem-se estenoses nos ductos centrais. Na CEP, habitualmente há envolvimento das vias biliares intra e extra-hepáticas.
Na CBP, os pacientes podem se apresentar com hepatomegalia, porém as dimensões do fígado tendem a diminuir com a progressão da doença. Nos estágios tardios, as alterações hepáticas coincidem com aquelas de cirroses provenientes de outras causas, sendo observada uma redistribuição volumétrica do fígado, com hipertrofia dos segmentos laterais do lobo hepático esquerdo e do lobo caudado, bem como irregularidades dos contornos hepáticos. Além disso, podem ser caracterizados nódulos regenerativos, mais evidentes à ressonância magnética (RM). Esse método ainda consegue demonstrar uma alteração específica da doença, vista em cerca de 40-70% dos pacientes, denominada sinal do halo periportal (veja imagem) – um halo de baixo sinal que circunda os ramos portais, tanto nas imagens ponderadas em T1 como em T2, embora mais evidente em T1 após a injeção intravenosa de gadolínio nas fases portal e de equilíbrio hepático. Em termos histológicos, tal configuração representa a tríade portal rodeada por uma área de perda de parênquima hepático, substituído por fibrose, e margeada por nódulos regenerativos.
Existe também a possibilidade de encontrar linfonodomegalias na CBP, em geral no hilo portal e no espaço portocava, mas não necessariamente relacionadas a malignidades. De toda forma, vale lembrar que o carcinoma hepatocelular pode desenvolver-se em cerca de 5% desses pacientes.
Do mesmo modo, é possível detectar e estudar alterações decorrentes de hipertensão portal pelos estudos de imagem, incluindo esplenomegalia, aumento do calibre dos vasos esplâncnicos, varizes abdominais e ascite.
A contribuição da elastografia
A elastografia vem assumindo papel relevante na mensuração da fibrose hepática, seja por RM, seja por ultrassonografia (US), pois a biópsia, mesmo considerada o padrão-ouro nesse contexto, configura um exame invasivo, com risco de complicações, que não pode ser utilizada rotineiramente para monitorar tais pacientes. Além disso, está sujeita a erros de coleta e tem custo mais elevado.
Da esquerda para direita (Figura 1): Elastograma com o qual é possível realizar o cálculo da rigidez hepática, quantificada, neste caso, em 4,9 kPa (grau de fibrose 3, numa graduação de 0 a 4).
Da esquerda para direita (Figura 2): Imagem ultrassonográfica convencional com aferição do grau de elasticidade em cm/s. O exame realiza pelo menos dez amostragens consideradas adequadas e fornece, como resultado, uma mediana dessas medidas.
Por ressonância magnética
Apesar de ter grande acurácia, a elastografia por RM pode falhar em cerca de 5% dos pacientes, especialmente pela sobrecarga férrica hepática. Outra limitação está em sua inabilidade para diferenciar fibrose de inflamação, visto que as duas condições aumentam o grau de rigidez hepática. Por outro lado, suas maiores vantagens, em relação à elastografia por US, incluem a capacidade de avaliar o fígado de forma global e a ausência de restrições em pacientes obesos, com ascite ou com espaços intercostais estreitos.
Por ultrassonografia
Metodologia de destaque na avaliação não invasiva do grau de fibrose hepática na atualidade, a elastografia por US quantifica a elasticidade do tecido após deformação resultante de uma força aplicada pelo transdutor.
Há diversas tecnologias disponíveis no mercado que se distinguem tanto pela maneira de uso dessa força quanto pela aferição dos resultados. O Fleury usa a elastografia por onda de cisalhamento após aplicação da Acoustic Radiation Force Impulse (Arfi) (EPIQ 9 – Philips), que traz, como benefício relevante, a possibilidade de fazer a avaliação ultrassonográfica concomitante do fígado e de escolher o melhor acesso ao local de amostragem – inclusive para biópsias, quando necessárias –, já que a elastografia fica acoplada ao aparelho de US. Os resultados são quantificados por velocidade da onda transversal (m/s) ou por módulo de força (kPa), tendo seus valores correlacionados com o grau de fibrose tecidual do escore Metavir da biópsia hepática. Na avaliação de fibrose em doenças hepáticas crônicas, essa distinção é fundamental como fator prognóstico e favorece o planejamento terapêutico.
Inicialmente, os estudos desse método foram realizados por elastografia transitória (Fibroscan – Echosens) em pacientes com hepatites virais e esteato-hepatites não alcoólicas e em transplantados, sendo, então, validados por diversos trabalhos subsequentes, também em aparelhos com metodologia Arfi, nos quais ficou comprovada a boa acurácia da técnica na diferenciação entre os vários graus de fibrose, sobretudo na hepatite C, o que acaba configurando o parâmetro mais importante de avaliação.
Entretanto, os valores medidos pela elastografia podem variar, dependendo da doença de base, implicando mais validações com grande amostragem. No caso da CBP, estudos preliminares têm demonstrado boa correlação entre o grau de fibrose aferido e o estágio da doença.
Espaço-porta com moderado infiltrado inflamatório e reação granulomatosa com agressão do ducto biliar (hematoxilina-eosina com aumento de 400x).
Achados histopatológicos
A biópsia hepática pode ser empregada para fundamentar ainda mais o diagnóstico de CBP, se necessário, auxiliar o diagnóstico dos pacientes AMA-negativos e excluir outras doenças concomitantes, como a hepatite autoimune e a esteato-hepatite não alcoólica. Os achados histopatológicos incluem:
Lesão do ducto biliar: a lesão típica é a colangite não supurativa em ductos interlobulares. Observa-se infiltração por linfócitos, eosinofilia, vacuolização citoplasmática e alterações regenerativas nucleares. Pode haver também colangite granulomatosa e reação ductular com neutrófilos. A evolução da doença leva à perda de ductos biliares e ao acometimento de ductos maiores.
Inflamação portal e periportal: nota-se infiltrado inflamatório portal, predominantemente linfoplasmocitário, com variável número de eosinófilos, histiócitos xantomatosos e agregados linfoides com centros germinativos. As células inflamatórias com frequência extravasam para o parênquima periportal adjacente, mas a agressão aos hepatócitos é limitada, raramente exuberante.
Alterações parenquimatosas: a lesão hepatocelular mostra-se discreta, com raros corpos acidofílicos. Agregados histiocitários e granulomas completos, sem necrose, igualmente podem ser vistos no parênquima. Com a progressão da doença, é possível que os hepatócitos periportais se tornem tumefeitos, com citoplasma claro, faixas granulares e hialinos de Mallory.
Colestase e acúmulo de cobre: a colestase morfológica só ocorre nas fases finais da doença. Pode ainda haver acúmulo de cobre no interior de lisossomos periportais, ligado à proteína.
Fibrose: acompanha reação ductular progressiva e a colatestase, que, nas fases iniciais, pode evidenciar hepatócitos sequestrados em meio à fibrose portal. A formação de septos une pequenos tratos portais entre si, dando origem a nódulos tipicamente irregulares, em padrão de “jogo de encaixe”.
Estadiamento
As lesões histológicas da CBP classicamente dividem-se em quatro estágios. A doença não acomete o fígado de modo uniforme, sendo possível observar todos os estágios simultaneamente. A tabela abaixo mostra o sistema mais utilizado: Scheuer (1967) e Ludwig (1978).
Estadiamento | Scheuer | Ludwig |
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I (Portal) | Inflamação portal com lesão do ducto biliar, contendo ou não lesão ductal florida | Inflamação portal com lesão do ducto biliar, contendo ou não lesão ductal florida |
II (Periportal) | Reação ductular (fibrose periportal presente) | Inflamação periportal (fibrose periportal presente) |
III (Septal) | Fibrose em ponte (ductopenia normalmente presente) | Fibrose em ponte (ductopenia normalmente presente) |
IV (Cirrose) | Cirrose biliar | Cirrose biliar |
ASSESSORIA MÉDICA |
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Anatomia Patológica Dr. Aloísio Souza F. da Silva [email protected] Dra. Diva C. Collarile Yamaguti [email protected] Bioquímica Dr. Nairo M. Sumita [email protected] Dr. Gustavo Loureiro [email protected] Imunologia Dr. Alexandre Wagner Silva de Souza [email protected] Dr. Luis Eduardo Coelho Andrade [email protected] Imagem Dr. Alberto Lobo Machado [email protected] Dra. Alessandra Caivano Rodrigues Ribeiro [email protected] Dr. André Paciello Romualdo [email protected] Dra. Angela Hissae Motoyama Caiado [email protected] Dr. Augusto C. de Macedo Neto [email protected] Dr. Carlos Alberto Matsumoto [email protected] Dr. Dario A. Tiferes [email protected] Dr. Eduardo Hideki Tokura [email protected] Dra. Gisele Warmbrand [email protected] Dr. Luis Chierighini [email protected] Dr. Roberto de Moraes Bastos [email protected] Dr. Rogério Pedreschi Caldana [email protected] Dra. Silvia Maria S. Rocha [email protected] |
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