A doença isquêmica do coração e o acidente vascular cerebral (AVC) são considerados as principais causas de mortalidade no mundo. No Brasil, cerca de 300 mil indivíduos por ano sofrem infarto agudo do miocárdio (IAM), ocorrendo óbito em 30% desses casos. Estima- -se que, até 2040, haverá aumento de até 250% de tais eventos no País. Para mudar esse cenário, é imperativo lançar mão de estratégias de prevenção, controlando os níveis de colesterol e glicose da população.
As alterações patológicas do processo aterosclerótico se desenvolvem já na primeira infância, porém raramente se observam placas ateroscleróticas macroscópicas antes da segunda ou terceira décadas de vida, exceto nos portadores de dislipidemia hereditária. Embora a aterosclerose seja uma doença sistêmica que afeta vários territórios arteriais, as placas se distribuem focalmente na árvore coronariana e em diferentes estágios de desenvolvimento, não obstante a mesma exposição aos fatores de risco.
Apesar disso, sabe-se que a identificação precoce e a intervenção sobre os chamados fatores de risco para a doença cardiovascular (DCV) podem modificar favoravelmente o curso da afecção. Por outro lado, um evento coronariano agudo pode ser a primeira manifestação da doença isquêmica cardíaca em, pelo menos, metade dos indivíduos, sendo muitas vezes fatal. Dessa maneira, um dos grandes desafios da prevenção cardiovascular é identificar indivíduos vulneráveis, assintomáticos, antes de um evento acontecer.
Alguns escores já consagrados, avaliados em coortes de 35 a 70 anos de idade, são amplamente usados para estimar o risco de eventos cardiovasculares, como os de Framingham e de Reynolds, bem como o escore de risco global (ERG). A determinação do grau de risco permite fazer um planejamento diagnóstico e terapêutico.
Na avaliação inicial de pacientes assintomáticos, a estratégia é utilizar o ERG e, por meio do cálculo do risco baseado nos fatores clássicos, como idade, sexo, pressão arterial, colesterol total (CT) e HDL-colesterol (HDL-c), tabagismo e diabetes mellitus (DM), classificar o indivíduo em determinadas categorias. Esses fatores são inseridos no ERG para calcular o risco em dez anos.
Uma tentativa de minimizar a probabilidade de eventos cardiovasculares é proceder ao rastreamento universal de fatores de risco, notadamente as dislipidemias e o diabetes.
Categorias de risco cardiovascular
■ Muito alto: indivíduos com doença aterosclerótica significativa, como manifestação clínica prévia de doença coronariana, cerebrovascular e vascular periférica ou, na ausência de eventos clínicos, obstrução ≥50% em qualquer território arterial.
■ Risco alto: indivíduos sem eventos clínicos, em prevenção primária, com ERG >20% em dez anos, portadores de aterosclerose, a forma subclínica, documentada por ultrassonografia de carótidas com placas, por índice tornozelo- -braquial <0,9, por escore de cálcio arterial coronariano >100 unidades Agatston ou por angiotomografia de coronárias com placas, portadores de aneurisma de aorta abdominal, portadores de doença renal crônica, definida por taxa de filtração glomerular <60 mL/min, e em fase não dialítica, e pacientes com concentrações de LDL-c ≥190 mg/dL. Também se consideram de alto risco diabéticos dos tipos 1 ou 2 com estratificadores de risco (ER) ou com doença aterosclerótica subclínica (DASC).
■ Risco intermediário: indivíduos com ERG entre 5% e 20%, no sexo masculino, e entre 5% e 10%, no feminino, mesmo se diabéticos, desde que não apresentem os critérios de DASC ou ER listados anteriormente.
■ Baixo risco: indivíduos de ambos os sexos com risco em dez anos <5%, calculado pelo ERG.
Rastreamento de dislipidemias
O controle da dislipidemia representa um dos importantes pilares na prevenção das doenças cardiovasculares ateroscleróticas. A evidência mais atual já demonstrou que o LDL-colesterol (LDL-c) alto, os triglicérides (TG) elevados e o HDL-c baixo predizem risco cardiovascular. Além disso, as diversas diretrizes sugerem a diminuição do LDL-c de acordo com o risco cardiovascular calculado, com reduções maiores sugeridas para pacientes de maior risco, mas ainda não apresentam consenso sobre o benefício da diminuição dos TG na redução de desfechos cardiovasculares. Ainda dentro do âmbito lipídico, destaca- -se a lipoproteína (a), ou Lp(a), já comprovadamente associada à probabilidade de diversos desfechos cardiovasculares.
Na prática clínica, deve-se considerar o rastreamento dos níveis lipídicos em idades mais precoces para aumentar o diagnóstico de casos de hipercolesterolemia familiar. Dessa forma, recomenda-se pedir a dosagem de CT e frações em indivíduos acima dos 10 anos de idade e nas crianças acima de 2 anos com sinais como xantomas e arco corneano, histórico familiar de colesterol elevado, DAC prematura (homens <55 anos ou mulheres <65 anos) e/ou fatores de risco como hipertensão arterial, diabetes e obesidade, além de doença aterosclerótica.
A aterosclerose avaliada por imagem pode reduzir imprecisões na quantificação da exposição ao risco, que ocorre em estágios bem precoces. A visualização direta do leito vascular permite identificar indivíduos que, por razões pouco claras, não desenvolvem aterosclerose apesar da vulnerabilidade aparentemente significativa, bem como pacientes que, na ausência de fatores de risco, desenvolvem doença aterosclerótica. O escore de cálcio tem forte correlação com a carga aterosclerótica coronariana total, sendo um marcador independente de risco de doenças cardiovasculares.
Como ocorre a associação de cada lipoproteína com o risco cardiovascular
⊲ LDL-c: a evidência de que o colesterol, em particular o LDL-c, contribui para a doença cardiovascular aterosclerótica provém de estudos experimentais, epidemiológicos, genéticos e clínicos randomizados. Mediante particularmente a evidência advinda dos estudos clínicos feitos com estatinas de forma isolada ou em combinação com outros hipolipemiantes, a maioria das diretrizes sugere tanto uma diminuição percentual do LDL-c (maior em indivíduos de maior risco), como também o alcance de metas de LDL-c (mais baixas quanto maior o risco). Abaixo, um resumo das recomendações da última atualização da diretriz brasileira:
⊲ Triglicérides: a hipertrigliceridemia é definida como a medida dos TG ≥150 mg/dL ou ≥175 mg/dL, se a amostra for obtida sem jejum. Dados epidemiológicos e genéticos sustentam a associação entre a elevação dos TG plasmáticos (e de remanescentes de colesterol e lipoproteínas ricas em triglicérides) e eventos cardiovasculares, mesmo em indivíduos em uso de estatina. No entanto, o impacto cardiovascular da redução farmacológica dos TG não é um consenso, principalmente após o resultado do estudo Prominent, que não mostrou benefício clínico do pemafibrato, apesar da queda significativa de TG, em pacientes diabéticos hipertrigliceridêmicos que usavam estatina.
⊲ HDL-c: o HDL-c baixo é um forte preditor de risco cardiovascular. Embora a maioria dos estudos tenha demonstrado associação inversa entre níveis de HDL-c e desfechos cardiovasculares, estudos mais recentes apontam associação em “U”. Já estudos randomizados não evidenciaram benefício clínico de terapias focadas na elevação do HDL-c, abrindo espaço para a discussão sobre a possível relevância de terapias direcionadas à otimização da função do HDL-c.
⊲ Apo B e não HDL-c: diferentes estudos já sugeriram a superioridade do não HDL-c e, em particular, da Apo B, em relação ao LDL-c, na predição do risco cardiovascular. No entanto, embora a medida do não HDL-c possa ser complementar à do LDL-c sem custo adicional, ainda não existe consenso sobre a relevância clínica da adição da Apo B. Em geral, as diretrizes referem potencial vantagem em seu uso em pacientes com hipertrigliceridemia.
⊲ Lp(a): diversos estudos, incluindo prospectivos e de randomização mendeliana, sugerem fortemente que a Lp(a) esteja associada a aumento de risco de IAM, AVC e estenose aórtica. Ainda se desconhece o impacto da diminuição farmacológica da Lp(a), entretanto estudos clínicos que testam potentes redutores dessa lipoproteína estão em andamento. Por ora, diversas diretrizes sugerem o uso da medida da Lp(a) como um agravante de risco quando elevada (≥50 mg/dL ou ≥100-125 nmol/L).
Parâmetros inflamatórios
A inflamação apresenta-se associada ao processo aterotrombótico em todas as suas fases, desde a aterogênese até a instabilização do ateroma. A utilização de biomarcadores inflamatórios, como a proteína C reativa ultrassensível (PCR-us) e as citocinas, a exemplo das interleucinas 6 e 18, para predizer eventos cardiovasculares e guiar o tratamento já foi uma área muito estudada. Destas, a PCR-us destacou-se como o biomarcador mais amplamente investigado e, apesar de ser um forte preditor de inflamação e de risco cardiovascular, sua medida rotineira não tem sido preconizada devido ao valor limitado da sua adição aos fatores de risco tradicionais.
Assim, a dosagem da PCR-us não deve ser feita na população em geral como forma de determinar o risco cardiovascular, mas parece útil como parte da estratificação de risco em indivíduos de baixo, baixo a moderado, moderado a alto e alto risco. Na prática, recomenda-se pedir duas dosagens separadas num intervalo de duas semanas, utilizando-se a média de ambos os resultados.
A V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia adotou o valor de PCR-us >0,2 mg/dL como nível de corte para o estabelecimento do risco cardiovascular. Diante de concentração >0,3 mg/dL, convém repetir o exame em duas a quatro semanas.
O marcador não deve ser utilizado para estratificar o risco em pacientes com doença aterosclerótica, diabéticos e indivíduos de alto risco cardiovascular global, embora possa acrescentar informação prognóstica nesse grupo.
Controle glicêmico
A associação entre DM e DCV é conhecida há cerca de cem anos, mas foi somente em 1974 que se demonstrou de forma prospectiva que o DM era um fator independente de risco cardiovascular em geral e particularmente de doença coronariana em uma população norte-americana.
Para ter uma ideia, a mortalidade em indivíduos com DM é 57% superior à da população geral e 38% de todas as mortes de pessoas que vivem com essa condição são de origem cardiovascular.
Para a redução de desfechos macrovasculares, o prolongamento do estudo UKPDS demonstrou que, para cada 1% de redução na hemoglobina glicada (A1C), há uma diminuição de 14% em eventos como o IAM e de 12% nos AVC fatais e não fatais em pessoas com DM2. Na mesma direção, a análise do prolongamento dos estudos DCCT/EDIC apontou que, em pessoas com DM1, o tratamento intensivo com insulina também reduz desfechos cardiovasculares.
A dosagem de A1C, além de ser ferramenta diagnóstica, serve para acompanhar o controle glicêmico e reflete a média da glicemia das últimas 12 semanas. Níveis de A1C abaixo de 7% estão relacionados a uma significativa queda do surgimento e da progressão de complicações microvasculares da doença. No entanto, a meta de A1C deve ser individualizada, a depender da presença de complicações crônicas, risco de hipoglicemia e tempo de DM.
As Sociedades Brasileiras de Endocrinologia e Metabologia e de Diabetes sugerem a realização da dosagem de A1C duas vezes ao ano para todos os pacientes com a doença. Além disso, recomendam que os indivíduos cujo esquema terapêutico sofreu mudança ou que não estejam atingindo os objetivos repitam o exame a cada três meses.
Um resultado de A1C, notadamente em nível acima da meta desejada, nem sempre é facilmente compreendido pelos pacientes em relação à necessidade de um controle mais rígido da glicemia. Assim, incorporou-se o conceito de glicose média estimada. Trata-se de uma equação matemática que transforma o valor de A1C em concentração de glicose, segundo a seguinte fórmula: glicose média estimada (mg/dL) = 28,7 x A1C - 46,7. O valor obtido por esse conceito permite um melhor entendimento do grau de controle dos níveis glicêmicos nos últimos 90 dias antes da dosagem da A1C.
Outro analito que pode ser usado para avaliar o controle metabólico é o 1,5-anidroglucitol (1,5-AG), cuja concentração sérica é inversamente proporcional à da glicemia. À medida que ocorre aumento da taxa de glicose e consequente elevação da reabsorção tubular desse carboidrato, o 1,5-AG passa a ser menos reabsorvido no túbulo, o que ocasiona a diminuição da sua concentração no sangue. Logo, níveis séricos baixos estão associados a uma glicemia elevada.
Os pacientes que mais se beneficiam da dosagem de 1,5-AG são os que exibem resultados de A1C entre 6% e 8%, nos quais o médico deseja avaliar a variabilidade glicêmica, já que os valores de 1,5-AG se reduzem mesmo nas elevações glicêmicas transitórias, como no pós-prandial.
A frutosamina, por sua vez, é outro teste indicativo do controle da glicemia, fornecendo uma ideia da média da glicemia das últimas três semanas.
As medidas da glicemia capilar (ponta de dedo) ou a glicose intersticial (monitorização contínua) também servem para avaliar o controle glicêmico, sendo especialmente úteis para quem usa insulina. As metas para glicemia capilar variam conforme o tipo e o tempo de DM. Para adultos com DM2, a glicemia pré-prandial desejável pode variar de <80 mg/dL a <130 mg/dL. Já após duas horas da refeição, a glicemia pós-prandial pode oscilar de <160 mg/dL a <180 mg/dL.
CONSULTORIA MÉDICA
Bioquímica Clínica
Dr. Nairo M. Sumita
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Endocrinologia e Diabetologia
Dr. Pedro Saddi
pedro.saddi@grupofleury.com.br
Cardiologia
Dra. Ivana Antelmi
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Dra. Viviane Zorzanelli Rocha Giraldez
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