O que há de novo na leucemia linfoblástica aguda

Conheça as mutações presentes tanto na doença de células B quanto na de células T.

A leucemia linfoblástica aguda (LLA) é a neoplasia maligna mais frequente em crianças e corresponde a menos de um quarto das leucemias agudas em adultos. Enquanto a população pediátrica apresenta 90% de chance de sobrevida em cinco anos, nos adultos e nos idosos esse percentual cai para 35-55% e menos de 30%, respectivamente. Tal diferença se deve a diversas peculiaridades biológicas e à piora do desenlace com o progredir da idade.

Originária da transformação maligna de um precursor de linhagem linfoide B ou T, a LLA é desencadeada por várias aberrações genéticas, que incluem translocações cromossômicas, aneuploidias e mutações em genes responsáveis pela regulação do ciclo celular e desenvolvimento linfoide.

Nas últimas décadas, as taxas de cura e de sobrevida melhoraram substancialmente, sobretudo nas crianças, devido a avanços na compreensão da genética molecular na patogênese da doença, à incorporação da detecção de doença residual mensurável (DRM), ao refinamento de algoritmos de estratificação de risco, ao advento de novos agentes terapêuticos e à evolução do transplante alogênico de células-tronco hematopoéticas (TCTH). Dentre os novos agentes terapêuticos, figuram os anticorpos monoclonais, imunomoduladores e célula T com receptor quimérico de antígeno (CAR-T), além de diversas drogas modernas direcionadas a alvos moleculares que promovem a proliferação da célula leucêmica.

Os fatores predisponentes para o aparecimento da doença em indivíduos até então saudáveis abrangem a exposição a fatores ambientais, como pesticidas, radiação ionizante ou infecções da infância, bem como a suscetibilidade genética herdada, decorrente de síndromes congênitas como Down, Fanconi, ataxia telangiectasia, Bloom e Nijimegen; de variantes genéticas herdadas encontradas nos genes ARID5B, IKZF1, CEBPE, CDKN2A/B, PIP4K2A, ETV6 [p.Arg359X]; da translocação Robertsoniana constitucional entre os cromossomos 15 e 21 e de polimorfismos de nucleotídeo único: rs12402181 no miR-3117 e rs62571442 no miR-3689d2.

O diagnóstico da LLA fica estabelecido por meio de testes laboratoriais, tais como o hemograma, o mielograma e a imunofenotipagem. Tão logo diagnosticada, é de fundamental importância a estratificação de risco para guiar o tratamento individualizado com o objetivo de obtenção da melhor resposta terapêutica. Fatores como idade, sexo e origem étnica, bem como características da doença, a exemplo de infiltração em sistema nervoso central, leucometria ao diagnóstico, linhagem B ou T e aspectos genéticos e genômicos da célula leucêmica, são relevantes para a estratificação de risco. Nesse contexto, a análise genética configura ferramenta indispensável e é feita por meio do cariótipo, da hibridação in situ por fluorescência (FISH) e do sequenciamento de nova geração (SNG) de genes relacionados à doença.

Na quinta edição da Classificação das Neoplasias Hematolinfoides da OMS, a nova nomenclatura da doença baseou-se nos eventos moleculares, uma vez que há outros métodos de detecção das alterações, além do cariótipo.

A seguir, estão detalhadas as anormalidades cromossômicas recorrentes e as mutações gênicas relacionadas tanto para LLA de células B (LLA-B) como para LLA de células T (LLA-T).

LLA-B

A elevada hiperdiploidia (ganho de, pelo menos, cinco cromossomos) é observada em 25% das crianças e em menos de 3% dos adolescentes ou adultos com LLA e associa-se a bom prognóstico. Esses pacientes têm, em adição, mutações em genes modificadores de histona, tais como, CREBBP, WHSC1, SUV420H1, SETD2 e EZH2, ou na via de sinalização RTK-RAS, como FLT3, NRAS, KRAS e PTPN11, com frequentes mutações subclonais.

Já a LLA hipodiploide (menos de 44 cromossomos) compreende dois grupos com perfis transcricionais e alterações genéticas distintas: um próximo do haploide (24-31 cromossomos), com mutações ativadoras de RAS e de IKZF3, raro mesmo em crianças (2%) e em adolescentes e adultos jovens (AAJ) (1%); e outro de baixa hipodiploidia (32-39 cromossomos), que apresenta alterações em TP53 (em geral, herdada), IKZF2 e RB1, com desenlace muito desfavorável.

A amplificação intracromossômica do 21 (iAMP21) é mais comum em crianças com mediana de idade de 9-10 anos, entretanto o valor prognóstico dessa anomalia permanece duvidoso.

Em relação às translocações, a t(9;22)(q34.1;q11), conhecida como cromossomo Philadelphia  ou rearranjo BCR::ABL1, tem sua frequência aumentada com o progredir da idade, uma vez que aparece em 2% a 5% das crianças, 6% dos AAJ e em mais de 25% dos adultos, associando-se a prognóstico desfavorável, embora o tratamento com antitirosinoquinase leve a uma melhora substancial no desfecho. Pacientes com essa translocação apresentam ainda mutações no IKZF1, que também desfavorece o prognóstico. 

A LLA Philadelphia-símile, ou BCR::ABL1-símile, foi descrita mais recentemente, após análises por SNG, e se caracteriza por apresentar assinatura gênica similar à LLA Philadelphia ou com BCR::ABL1, porém sem a presença da translocação ou do rearranjo. As alterações genômicas desse novo subtipo afetam fatores de transcrição linfoide B, receptores de citocinas e sinalização de quinase de tirosina. Entre os genes mutados, identificáveis por FISH ou por SNG, estão CRLF2 (IGH::CRLF2 e P2RY8::CRLF2, em 50% dos casos), rearranjos de genes da classe tirosinoquinase ABL (ABL1, ABL2, CSFR1, PDGFRA e PDGFRB, em 12%), rearranjos JAK2 (5-10%),  mutações EPOR (3-10%), mutações ativadoras na via JAK-STAT (JAK1, JAK2, TLT3, ILR7, SH2B3 e TSLP, em 10%) e via de sinalização RAS (NRAS, KRAS e PTPN11, em 2-8%), além de outras quinases menos comuns (FLT3, NTRK3 e FGFR1).

A incidência de LLA Philadelphia-símile varia de 10%, na infância, para 20%, em adultos e 25-30%, em AAJ. Há segmentação dos subtipos de quinases, de tal forma que rearranjos ABL ocorrem mais em crianças e adolescentes; já CRLF2 e mutações ativadoras de sinalização RAS, são mais comuns em adolescentes, mutações EPOR, em AAJ e JAK2, em adultos. A LLA Philadelphia-símile se associa a prognóstico desfavorável, ainda que o uso de inibidores de tirosinoquinase com alvo em ABL1 e JAK2 melhore a reposta. 

O rearranjo do gene KTM2A (localizado no 11q23), anteriormente denominado MLL, tem distribuição bifásica, com mais de 80% dos casos em lactentes (entre 0 e 1 ano) e cerca de 5% em crianças e AAJ, aumentando para 15% em adultos. Está associado a prognóstico bastante desfavorável. Os lactentes com LLA e rearranjo KTM2apresentam poucas mutações adicionais, o que sugere que essa aberração genética é capaz de, sozinha, induzir a transformação leucêmica.

A LLA com t(12;21)(p13;q22), ou fusão dos genes ETV6::RUNX1 (anteriormente denominados TEL e AML1,) é frequente em crianças (30%), rara em AAJ e adultos e se associa a prognóstico favorável. Não pode ser identificada pelo cariótipo e, sim, pela FISH ou por SNG.

A LLA ETV6::RUNX1-símile tem perfil de expressão gênica semelhante à ETV6::RUNX1, porém não apresenta tal fusão. Seu perfil genômico é enriquecido por lesões em ETV6 e IKZF1 e deleções em ARPP21. Apesar de ser observada predominantemente em crianças, ainda assim é rara (3%), porém o prognóstico não está claro.

A t(1;19)(q23;p13.3), ou rearranjo TCF3::PBX1 (TCF3 era anteriormente denominado E2A), é encontrada em cerca de 5% dos casos de crianças e adultos e se associa a bom prognóstico. A maioria das translocações identificadas pelo cariótipo ou FISH ocorre na forma de der(19)(1;19). Outros parceiros de fusão do TCF3 são ZNF384 (12p13) e HLF (17q21). A translocação variante TCF3::HLF está presente em menos de 1% dos casos e confere prognóstico adverso.  

A LLA com t(5;14)(q31;q32), ou IGH::IL3, acompanha-se de eosinofilia. O gene IGH é estimulado pela justaposição ao IL3, levando à produção aumentada de interleucina 3 e à liberação de eosinófilos maduros no sangue periférico, que promovem sintomas graves. Associa-se frequentemente com deleções no IKZF1. A maioria dos pacientes é AAJ, com predomínio em homens (relação M 5:1 F). A resposta ao tratamento é pobre, com falha na indução e altos níveis de DRM, o que justifica o prognóstico intermediário.

O rearranjo gênico DUX4::ERG ocorre em 4% a 7% das LLA e causa a expressão aumentada de DUX4 e desregulação ou deleção de ERG, com perda de sua função. Além disso, fusões com DUX4 podem se acompanhar de deleções de IKZF1, PAX5 e CDKN2A/CDKN2B, bem como por mutações ativadoras de NRAS e KRAS, além de MYC, MYCBP2, MGA e ZEB2. Há recorrência preferencial de fusões do gene DUX4 em LLA de AAJ. O rearranjo confere bom prognóstico mesmo nos pacientes com alterações genômicas concomitantes desfavoráveis, como deleção no IKZF1, o que se dá em 40% dos casos. 

A LLA com rearranjo do MEF2D, fator estimulador de miócito 2D, é observada em 4% das crianças e em 7% dos AAJ, estando relacionada a desenlace desfavorável. Pode se rearranjar com BCL9, HNRNPUL1, SS18, FOXJ2, CSFR1 ou DAZAP1, que resultam em atividade transcricional aumentada. O rearranjo MEF2D::ZNF384 se caracteriza por dois subgrupos de expressão distintos: MEF2D, com prognóstico desfavorável, e ZNF384, com hiperexpressão de genes da via JAK-STAT e GATA3, CEBPA e CEPBB. Esses casos podem ser tratados com a associação de inibidor da via JAK-STAT.

A LLA com ZNF384 (anel de zinco 384) ocorre em 5% das crianças e em 10% dos AAJ, tendo, como parceiros, os genes EP300, CREBBP, TAF15, SYNGR, EWSR1, TCF3, ARID1B, BMP2K ou SMARCA2. Esse subtipo é, em geral, diagnosticado como fenótipo misto B/mieloide, com expressão de antígenos mieloides CD13 e CD33, além dos marcadores de linhagem B.

Os rearranjos do IGH com outros parceiros, além do CRLF2 e EPOR, já descritos na Philadelphia-símile, tais como CEBP e ID4, ocorrem em 10% dos AAJ e conferem prognóstico desfavorável.

O gene PAX5 age como supressor tumoral quando em haploinsuficiência, com alterações em 31% das LLA-B. Rearranjos de PAX5 com diferentes parceiros são relatados em 2% a 3% das LLA.

As deleções de IKZF1 ocorrem de forma concomitante a deleções em CDKN2A, CDKN2B, PAX5 ou PAR1, na ausência de deleções ERG. Esse subgrupo está presente em 6% das LLA pediátricas e se associa a prognóstico muito desfavorável.

 

Lista das principais alterações genéticas identificadas pelo cariótipo nos diferentes subtipos de LLA-B, de acordo com a quinta edição da Classificação da OMS (Alaggio et al, 2022)

 

LLA-B com elevada hiperdiploidia (de 51 a 65 cromossomos)
LLA-B com hipodiploidia (<44 cromossomos)
LLA-B com iAMP 21
LLA-B com fusão BCR::ABL1 [ou t(9;22)(q34;q11.2)]
LLA-B com fusão BCR::ABL1-símile
LLA-B com rearranjo KTM2A [ou t(v;11q23)]
LLA-B com fusão ETV6:: RUNX1 [ou t(12;21)(p13.2;q22.1)]
LLA-B com fusão ETV6:: RUNX1-símile
LLA-B com fusão TCF3::PBX1 [ou t(1;19)(q23;p13.3)]
LLA-B com fusão IGH::IL3 [ou t(5;14)(q31.1;q32.1)]
LLA B com fusão TCF3::HLF
LLA-B com outras anormalidades genéticas definidas


LLA-T 

Resultante de um processo de múltiplas etapas, no qual as mutações genéticas se acumulam e alteram o controle normal de crescimento celular, diferenciação, proliferação e sobrevida durante a timopoese, a LLA-T é mais comum em adultos que em crianças (25% e 15%, respectivamente) e no sexo masculino, com hiperleucocitose, rápida infiltração e massa mediastinal, além de envolvimento do sistema nervoso central.  A genética é heterogênea, com a presença de anormalidades cromossômicas em grande parte dos pacientes. As principais vias oncogênicas, em 80% dos casos, são as mutações que promovem ativação constitutiva de sinalização do gene NOTCH1 ou a perda de função do gene FBXW7. Observa-se perda de genes supressores tumorais p16(INK4A) e p14(ARF) no locus CDKN2em 70% das LLA-T, o que sugere que a ativação constitutiva da sinalização NOTCH1 coopera com deleções no CDKN2A para promover a oncogênese.

A LLA de precursor T precoce tem menor frequência das alterações clássicas da LLA-T acima descritas, mas alta prevalência de mutações em FLT3, N/KRAS, DNMT3A, IDH1/2, JAK3 e ETV6, semelhantes ao que se vê em leucemia mieloide aguda, e o prognóstico é adverso.

Em 50% das LLA-T, a translocação cromossômica justapõe o gene de fator de transcrição sob o controle de promotores de célula T (receptor de célula T α, β e δ). A expressão aumentada de fatores de transcrição oncogênicos inclui TAL1, TAL2, LYL1, OLIG2, LMO1, LMO2, TLX1 (HOX11), TLX3 (HOX11L2), NKX2-1, NKX2-2, NKX2-5, HOXA, MYC, MYB e TAN1. Mais raramente, essas translocações resultam de perda de fatores de transcrição importantes para a supressão de tumor, como WT1, LEF1, ETV6, BCL11B, RUNX1 ou GATA3.

Em quase 25% dos casos de LLA-T ocorrem mutações que levam à perda de função ou deleções de AZH2 e SUZ12, que codificam dois componentes importantes do complexo PRC2, envolvido na modificação de cromatina. O gene PHF6, que também tem função epigenética, está deletado em 16% dos pacientes pediátricos e em 38% dos adultos com LLA-T. Outras alterações nas vias de tradução de sinais são observadas, como a perda de PTEN, um regulador de via PI3K-AKT (5-10% dos casos) e rearranjos ABL1 para formar fusões gênicas com NUP214, EML e ETV6 (8%).

Mutações no gene DNMT3A, que habitualmente são encontradas em neoplasia mieloide, também podem ser detectadas nas LLA-T em 10% dos casos e se associam a prognóstico desfavorável. Essas alterações aumentam de incidência com o progredir da idade.

Em conclusão, longe de esgotar o tema, já que nem todas as aberrações estão aqui detalhadas e outras novas são continuamente descritas, percebe-se que essa riqueza de dados permite aprofundar o conhecimento da fisiopatogenia molecular da doença, melhorar a estratificação de risco e promover tratamento individualizado.

Ficha técnica

Painel genético para leucemia linfoblástica aguda

Método: Sequenciamento de nova geração (SNG)

Amostra: sangue periférico ou medula óssea

Prazo de resultados: em até 15 dias

Genes analisados: ABL1 (4-9); AFF1 (completo); ATM (completo); BRAF (6, 11-16, 18); CDKN2A (completo); CDKN2B (completo); CREBBP (completo); CRLF2 (completo); ERG (completo); ETV6 (completo); FAT1 (2‡; 8; 9; 10‡; 13; 16; 21; 22‡; 25‡; 27‡); FAT3 (1‡; 9‡; 10; 11; 15; 18‡; 23‡; 25‡); FBXW7 (9-12); FLT3* (11, 14-21); GATA3 (completo); IKZF1 (completo); IKZF2 (completo); IKZF3 (completo); IL7R (completo); JAK1 (completo); JAK2 (completo); JAK3 (completo); KRAS (completo); LEF1 (1, 2 e 3); LYL1 (completo); MLLT1 (completo); NOTCH1 (3-6, 8, 10, 13, 15, 17, 18, 20, 25-28, 32-34); NRAS (2 e 3); P2RY8 (completo); PAX5 (completo); PHF6 (completo); PTEN (completo); PTPN11 (1-4, 6-13); RB1 (completo); RUNX1 (completo); SH2B3 (completo); STAT3 (completo); STAT5B (completo); TCF3 (completo); TET2 (1); TLX3 (completo); TP53 (completo); TYK2 (completo); U2AF1 (2, 6, 8); WT1 (completo).

Fusões gênicas


Referências

Alaggio et al. Leukemia 2022, https://doi.org/10.1038/s41375-022-01620-2

Chaeer et al. Curr Hematol Malign Rep 2020, https://doi.org/10.1007/s11899-020-00582-5

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Fournier et al. Frotn Oncol 2019, 9: 1374.

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Malard F& Mohty M. Lancet, 2020; 395:1146-62.

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Rowsey et al. Blood Cancer Journal (2019) 9: 81 https://doi.org/10.1038/s41408-019-0239-z


Consultoria médica

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