Doença de von Willebrand

Tópicos presentes neste capítulo

  • Epidemiologia  
  • Classificação  
  • Diagnóstico  
  • Exames de screening  
  • Exames específicos  
  • Exames discriminatórios  
  • Análise multimérica do VWF  
  • Ensaio de ligação entre VWF e colágeno  
  • Análise molecular da DVW  
  • Referências bibliográficas  

A doença de von Willebrand (DvW) é a coagulopatia hereditária mais comum em diferentes populações humanas. Foi descrita pela primeira vez em 1926, por Eric von Willebrand, como uma doença hemorrágica hereditária em membros de uma família proveniente da ilha de Föglö, localizada entre a Finlândia e a Suécia. A DvW caracteriza-se por uma deficiência quantitativa e/ou qualitativa do fator de von Willebrand (VWF – von Willebrand Factor), uma glicoproteína plasmática complexa sintetizada pelos megacariócitos e células endoteliais e que circula na forma de multímeros com peso molecular variando de 500 a 20.000 Kda. O VWF exibe estrutura distribuída em domínios, sendo que múltiplos domínios designados de A a D arranjam-se na seqüência D1-D2-D’-D3-A1-A2-A3-D4-B1-B2-B3-C1-C2. Após ser sintetizada, a molécula sofre alterações pós-traducionais, as quais incluem a clivagem de seqüência correspondente ao propeptídeo, além dos processos de dimerização e multimerização.

O VWF apresenta sítios de ligação ao colágeno, às glicoproteínas plaquetárias (GPIb e GPIIb-IIIa) e ao fator VIII da coagulação (FVIII), justificando seu importante papel no sistema hemostático. As duas principais funções do VWF são: 1) adesão plaquetária ao colágeno exposto do subendotélio, após lesão vascular, levando a ativação plaquetária com exposição da GPIIb-IIIa e subseqüente agregação plaquetária; 2) ligação com o FVIII, evitando sua proteólise e promovendo sua estabilização no plasma. As diferentes funções do VWF são relacionadas a domínios específicos da molécula da proteína (Figura 1). Por exemplo, o domínio A1 está envolvido na ligação do VWF à GPIb plaquetária e ao colágeno fibrilar. No domínio A3 encontra-se um sítio de ligação ao colágeno tipo III. No domínio D3 encontram-se os sítios de ligação ao fator VIII. Finalmente, na porção carboxi-terminal do domínio C2 encontra-se um sítio de ligação à GPIIb-IIIa plaquetária.

O gene codificante do VWF, localizado no braço curto do cromossomo 12 (12p12ter), contém 178 kb distribuídos ao longo de 52 éxons. O RNA mensageiro tem extensão de 8,7 kb, e o produto final do gene é um peptídeo de 2050 aminoácidos (Figura 1). Há um pseudogene no cromossomo 22, com 29 Kb, que corresponde à seqüência entre os éxons 23 e 34. Uma diferença de 3,1% entre as seqüências desses genes possibilita o estudo das mutações na DvW."

Epidemiologia

A prevalência da DvW varia de 0,8% a 2%, a depender da população observada. Estudos populacionais incluem indivíduos assintomáticos ou oligossintomáticos com baixos níveis quantitativos ou funcionais do VWF. A prevalência da DvW nesses estudos é mais elevada que nos estudos realizados em centros de referência para investigação de coagulopatias, pois via de regra são encaminhados aos centros os pacientes sintomáticos. A falta de um dado definitivo acerca da prevalência deve-se em parte à dificuldade de estabelecer o diagnóstico de DvW, devido à apresentação clínica variável e a limitações nos testes laboratoriais, principalmente para a DvW tipo 1, caracterizada por discreto déficit quantitativo. A Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia definiu critérios para facilitar o diagnóstico de DvW tipo 1, que são: história de sangramento convincente, testes laboratoriais compatíveis com DvW tipo 1 e história familiar positiva, com ou sem determinação de mutações no VWF. Quando todos os itens estão presentes, o diagnóstico é firmado. Caso o paciente apresente dois itens apenas, o diagnóstico torna-se provável.


Classificação

Uma classificação simplificada da DvW, proposta em 1994, enfatiza as diferenças nos mecanismos fisiopatológicos que levam a um determinado fenótipo da doença.

Os defeitos quantitativos do VWF são divididos em deficiência parcial (DvW tipo 1) e total (DvW tipo 3). Os defeitos qualitativos (DvW tipo 2) são divididos em: 2A (diminuição da função dependente de plaqueta na ausência de multímeros de alto peso molecular), 2B (aumento da afinidade pela GPIb plaquetária), 2M (diminuição da função dependente de plaqueta na presença de multímeros de alto peso) e 2N (diminuição da afinidade do VWF pelo FVIII). Entre os tipos de DvW, observa-se a seguinte distribuição: 60-80% tipo 1, 7-30% tipo 2 e 5-20% tipo 3. Os subtipos da DvW tipo 2 se distribuem em: 30% do tipo 2A, 28% do tipo 2B, 8% do tipo 2M e 34% do tipo 2N, embora as prevalências de cada subtipo possam variar em diferentes populações e regiões geográficas. O modo de transmissão genética é autossômico dominante (DvW tipo 1, 2A e 2B) ou recessivo (DvW tipo 2N e 3), podendo apresentar penetrância variável e casos de heterozigose composta.


Diagnóstico

Para diagnóstico e classificação da DvW, são relevantes os dados da história pessoal e familiar de sangramento, além da análise laboratorial completa.

A DvW é uma entidade clínica heterogênea, com gravidade variável no que se refere às manifestações hemorrágicas. Apresenta diferentes fenótipos clínicos, sendo o sangramento mucocutâneo o mais comum, principalmente epistaxe e menorragia. Sangramentos em outros sítios, tais como trato gênito-urinário e tubo digestivo, também são relatados, embora menos freqüentemente. Quadro clínico semelhante ao da hemofilia A, caracterizado por hematomas, hemartroses e sangramentos em outros sítios profundos, pode ser visto em pacientes com DvW tipo 3 e tipo 2N.

Os exames complementares úteis no diagnóstico da DvW podem ser divididos em: exames de screening para avaliação inicial de coagulopatias hemorrágicas, exames específicos para confirmação diagnóstica e exames discriminatórios que possibilitam a classificação da doença. A tabela 1 apresenta em detalhe o conjunto de resultados que auxiliam no diagnóstico e classificação da DvW.


Exames de screening

Tempo de sangramento (TS)

O TS é um teste in vivo para avaliação dos componentes da hemostasia primária (vaso, plaqueta e VWF) e suas interações. Alterações no valor do TS refletem defeitos quantitativos e qualitativos desses componentes. Cerca de 50% dos pacientes com DvW apresentam prolongamento do TS, sendo o resultado muito variável em pacientes com os tipos 1 e 2 da doença. Esta técnica é pouco sensível e específica, além de ter baixa reprodutibilidade. O método mais utilizado é o de Ivy modificado. Corresponde ao tempo necessário para que o sangramento cesse, após um corte padronizado de 1 mm de profundidade na pele da região anterior do antebraço.

Contagem de plaquetas

A contagem de plaquetas, por método automatizado ou manual, auxilia na detecção de plaquetopenia, que faz parte do diagnóstico diferencial de coagulopatias hemorrágicas resultantes de alteração no sistema hemostático primário. A detecção de plaquetopenia, geralmente discreta, pode sugerir o diagnóstico de DvW tipo 2B.

Tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPA)

O TTPA depende dos níveis de FVIII e pode estar prolongado na DvW, principalmente nas formas mais graves do tipo 1, no tipo 3 e no tipo 2N. O valor diagnóstico do TTPA é limitado, porque muitos pacientes têm a atividade do FVIII em um nível plasmático suficiente para que o teste seja normal. Deste modo, um valor de TTPA normal não exclui o diagnóstico de DvW.

Métodos de filtragem sob alta pressão (“high shear stress”)

Correspondem a métodos que utilizam um sistema de alto fluxo (Platelet Function Analyzer – PFA-100Ô) com forças que se assemelham às presentes em arteríolas. São modelos para avaliação rápida e simples da função plaquetária dependente do VWF. Apresentam maior sensibilidade, especificidade e reprodutibilidade que o TS in vivo.


Exames específicos

Dosagem de VWF (VWF:Ag)

Os níveis plasmáticos de VWF:Ag são influenciados por vários parâmetros fisiológicos, incluindo idade, grupo étnico, hormônios e grupo sangüíneo ABO. Sabe-se que o grupo sangüíneo O pode apresentar, em média, 25% a menos de VWF circulante em relação aos outros grupos. Desta forma, os valores de VWF:Ag considerados normais ocupam uma extensa faixa (40 a 240 UI/dl). Os métodos mais utilizados na detecção de VWF:Ag são imunológicos (radioimunoensaio ou imunoensaio enzimático), por serem mais sensíveis e precisos. Níveis reduzidos de VWF:Ag estão presentes nas deficiências quantitativas do VWF (DvW tipo 1 e tipo 3), sendo que nas variantes do tipo 2, os níveis podem ser diminuídos ou normais.

Atividade coagulante do FVIII (FVIII:C)

A determinação de FVIII:C é feita por meio de método coagulométrico, baseado no TTPA, ou cromogênico, baseado na geração de fator X ativado. A diminuição do VWF (DvW tipo 1 e tipo 3) ou de sua afinidade com o FVIII (DvW tipo 2N) ocasiona uma diminuição no FVIII:C. Nos outros tipos da DvW, a redução dos níveis do FVIII é variável.

Atividade cofatora da ristocetina (VWF:RCo)

Esse método é utilizado para testar a aglutinação plaquetária dependente do VWF. A ristocetina é um antibiótico glicoproteico que promove a interação entre VWF e GPIba plaquetária. Ao acrescentar ristocetina, em concentração > 1,0 mg/ml, a uma suspensão de plaquetas normais, fixadas ou não em formol, e plasma do paciente, desencadeia-se um processo de aglutinação plaquetária. Este processo é dependente da quantidade de VWF:Ag, principalmente de multímeros de alto peso molecular, e de sua afinidade pela GPIb plaquetária. A formação de aglutinados plaquetários facilita a transmissão de luz através da suspensão de plaquetas e a luz captada pelo agregômetro é registrada em forma de gráfico. Um método imunológico, por ELISA, foi desenvolvido recentemente. A ligação entre VWF e plaqueta, na presença de baixa concentração de ristocetina, é testada, utilizando-se GPIb plaquetária fixada em placa.


Exames discriminatórios

Agregação plaquetária induzida por ristocetina

O método, realizado em agregômetro baseia-se na captação da luz transmitida através da suspensão de plasma rico em plaquetas do paciente. A transmissão da luz aumenta com a formação de aglutinados plaquetários, após a adição de ristocetina em concentrações diferentes (baixa e alta concentrações).

Na DvW tipo 3, não se observa aglutinação plaquetária nas duas concentrações, o que também pode ocorrer em DvW tipo 2A e 2M, uma vez que os multímeros de alto peso molecular têm um papel importante nesse processo. Uma aglutinação com baixa concentração de ristocetina é característica da DvW tipo 2B, devido ao aumento da afinidade entre o VWF e a GPIb. Nos outros tipos de DvW, o teste apresenta resultados variáveis.

Análise multimérica do VWF

O padrão multimérico do VWF pode ser avaliado por meio de eletroforese em gel de SDS-agarose, na concentração de 1,0 a 1,5% de agarose com polimerização em elevada temperatura. Na DvW tipo 3, nota-se ausência de bandas, ao passo que na DvW tipo 2A os multímeros de alto e intermediário peso molecular não estão presentes e no tipo 2B apenas os multímeros de alto peso molecular não são visualizados. A DvW tipo 1 apresenta uma diminuição global e homogênea, envolvendo multímeros de todos os pesos moleculares, mas a composição multimérica e intensidade das bandas podem também mostrar-se normais.

Ensaio de ligação entre VWF e FVIII (VWF:FVIIIB)

Os métodos utilizados para detecção da afinidade entre VWF e FVIII podem ser cromogênico ou imunológico (ELISA). São utilizadas placas com FVIII fixado. Trata-se de um método importante para discriminar entre a DvW tipo 2N e a hemofilia A.

Ensaio de ligação entre VWF e colágeno

Este método avalia a capacidade do VWF de se ligar ao colágeno (VWF:CB - Collagen Binding Assay). A presença de multímeros de alto peso molecular e a quantidade total do VWF:Ag normal são condições fundamentais para um teste normal. Portanto, espera-se uma diminuição do VWF:CB na DvW por déficit quantitativo (tipos 1 e 3) e nas variantes do tipo 2 em que há uma diminuição dos multímeros de alto peso molecular ou alteração no sítio de ligação do VWF com o colágeno.

Dados recentes indicam que a utilização combinada dos dois testes funcionais (VWF:RCo e VWF:CB) pode contribuir para um diagnóstico mais preciso e melhor caracterização da DvW, por permitir a detecção de variantes funcionais distintas.


Análise molecular da DVW

A detecção de lesões moleculares subjacentes aos casos de DvW é complicada por pelo menos dois fatores importantes. Primeiro, o grande tamanho e complexidade do gene dificultam o encontro de mutações causadoras da doença. Segundo, a existência de um pseudogene parcial implica cuidado adicional no desenho de primers e interpretação de resultados de seqüências correspondentes aos éxons 23 e 24. Apesar disso, a análise gênica pode ser utilizada para caracterização dos defeitos genéticos presentes na DvW e de fato resultou em melhor compreensão dos mecanismos fisiopatológicos da doença ao desvendar a correlação entre defeitos moleculares e fenótipos específicos da doença. Além disso, a correlação entre uma determinada alteração gênica e os parâmetros hemostáticos observados em indivíduos heterozigotos para essa alteração auxiliam na determinação da forma de transmissão da DvW.

O espectro de alterações genéticas no VWF é amplo. Estão descritas, atualmente (outubro/2002), 243 diferentes defeitos moleculares na DvW, os quais incluem mutações missense, nonsense, deleções e inserções.

Nos defeitos quantitativos do VWF (DvW tipos 1 e 3), as alterações gênicas mais comuns são deleções e mutações nonsense e missense. Regiões distintas do gene estão envolvidas com esses fenótipos.

A detecção de mutação nos déficits qualitativos (DvW tipos 2A, 2B, 2M e 2N) torna-se mais fácil, uma vez que essas alterações se concentram em regiões que codificam domínios específicos do VWF, envolvidos com a função deficiente.

A DvW tipo 2A  está relacionada com dois grupos de alterações genéticas que resultam na diminuição da quantidade de multímeros de alto peso molecular. Um grupo de mutações interfere no armazenamento e secreção de multímeros de alto peso molecular, sendo o outro grupo responsável pela produção de multímeros do VWF mais sensíveis a proteólise no plasma. A maior parte das mutações relacionadas ao tipo 2A está localizada no éxon 28 do gene do VWF.

Na DvW tipo 2B também há concentração de mutações no éxon 28, no qual foram descritas, até o momento, 48 mutações missense. Tais defeitos moleculares ocorrem em regiões codificantes do domínio A1 do VWF, onde se localiza o sítio de ligação com a GPIb plaquetária.

A DvW tipo 2M é geralmente resultante de mutações missense localizadas nos domínios A1 e D3 do VWF, diminuindo sua afinidade com plaquetas, sem alterar a quantidade de multímeros de alto peso molecular.

Na DvW tipo 2N, as mutações missense, envolvendo os domínios D’ e D3 do VWF, geralmente localizam-se entre os éxons 18 e 22, e resultam em diminuição de afinidade do FvW pelo FVIII.

Informações mais detalhadas a respeito das variações gênicas (mutações e polimorfismos) presentes na DvW, estão disponíveis  em um banco de dados mantido pela Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia . O acesso a estes dados é possível através da internet, pelo endereço: http://www.med.unc.edu/isth.

A principal técnica de biologia molecular utilizadas para a análise gênica na DvW é a PCR (polymerase chain reaction). Na maior parte dos protocolos, uma estratégia direta de amplificação é adotada, focada em seqüências de DNA codificando regiões específicas da proteína. Nessa estratégia, o DNA genômico é extraído de leucócitos do sangue periférico e a região de interesse do gene (promotora, éxon, íntron, etc) é amplificada utilizando-se pares de primers apropriados. As condições da reação de amplificação devem ser modificadas, em cada caso, para a obtenção de especificidade e rendimento máximos. A seguir, a região de interesse é seqüenciada, preferencialmente por método automatizado. O conhecimento da seqüência do pseudogene do VWF é essencial para a realização da amplificação adequada de regiões entre os éxons 23 e 34 do VWF.

Técnicas alternativas, envolvendo isolamento de RNA total a partir de leucócitos periféricos, são também disponíveis. Nessa abordagem, o RNA é submetido a transcrição reversa (RT-PCR) sob ação da enzima transcriptase reversa e utilizando primers específicos. Os produtos de amplificação são então purificados e a análise é feita por método de clivagem química (CCMA, chemical cleavage mismatch analysis).


Referências bibliográficas

1. Budde V, Drewke E, Mainuch K, Schneppenheim R. (2002) Laboratory Diagnosis of Congenital von Willebrand Disease. Sem Thromb Haemost 28 (2):173-189.

2. Castaman G. (2001) Epidemiology and diagnosis of von Willebrand disease. Haematologica 86 (suppl II to no 10):1-9.

3. Federici AB, Manucci PM. (1999) Diagnosis and management of von Willebrand disease.  Haemophilia 5 (suppl 2):28-37.

4. Rodighiero F. (2002) von Willebrand disease still an intriguing disorder in the era of molecular medicine. Haemophilia 8:292-300.

5. Sadler JE, Manucci PM, Berntorp E, Bachkov N, Boulyjenkov V, Ginsburg D, Meyer D, Peake I, Rodeguiero F, Srivastava A. (2000) Impact, Diagnosis and Treatment of von Willebrand Disease. Thromb Haemost 84:160-174.

Tabela 1. Análise laboratorial da DvW 

N = valor normal

 = valor abaixo do normal

 = valor acima do normal

ND= não detectável

Figura 1. Representação esquemática dos domínios funcionais do fator de von Willebrand, com as correspondentes regiões codificantes do gene (éxons) e variantes qualitativas da DvW.