Cardiomiopatia hipertrófica

A doença que está mais perto do que você imagina!

A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) é a doença cardíaca hereditária mais comum e, no entanto, de 85% a 94% das pessoas continuam subdiagnosticadas ou com diagnósticos equivocados.

Trata-se de uma doença crônica de natureza genética, autossômica dominante, causada por mutações em genes que codificam proteínas do sarcômero e definida pelo seu fenótipo de aumento da espessura do ventrículo esquerdo de, pelo menos, 15 mm ou 13 mm, se teste genético positivo ou histórico familiar de CMH estiverem presentes e na ausência de outras doenças cardíacas, sistêmicas ou metabólicas.

A CMH pode se manifestar em todas as idades, sexos e raças, sendo geralmente diagnosticada entre 40-50 anos. A patogenia da doença ocorre por disfunção sarcomérica, que leva ao excesso de pontes cruzadas de actina-miosina (figuras 1a e 1b), ocasionando o fenótipo frequentemente observado da hipertrofia ventricular (em geral esquerda e assimétrica), disfunção diastólica, a principal causa dos sintomas de insuficiência cardíaca, hipercontratilidade compensatória e, consequentemente, consumo energético excessivo pelo miocárdio.

Os sintomas são inespecíficos e variáveis, com boa parte dos indivíduos completamente assintomáticos ou apresentando dispneia, fadiga, palpitação, angina e até síncope, tornando o diagnóstico ainda mais desafiador.

Além de sintomas debilitantes, que podem ter grande impacto na qualidade de vidas desses pacientes, as complicações passam pela insuficiência cardíaca, arritmias (principalmente fibrilação atrial), acidente vascular cerebral e, a mais temida, a morte súbita de origem cardíaca, muito rara, porém podendo ser a primeira manifestação da doença.

Figura 1a. Miocárdio normal. Em uma unidade de músculo cardíaco normal (sarcômero), a miosina (em vermelho) se liga à actina, formando pontes cruzadas que regulam a contração e o relaxamento do coração.

Figura 1b. Excesso de pontes cruzadas de actina-miosina (em verde e vermelho). Ocorre ruptura do sistema regulador metabólico do cálcio do sarcômero, levando a um estado de hipercontratilidade. Isso gera redução da eficiência da contratilidade do miocárdio, pois mais energia é consumida quando o sarcômero se contrai, resultando em eficiência mecânica reduzida. O aumento da sensibilidade ao cálcio dentro do miócito ainda produz déficits no relaxamento do sarcômero, culminando na causa mais frequente de insuficiência cardíaca, a disfunção diastólica avançada (graus II-IV).


Subtipos da cardiomiopatia hipertrófica

Existem dois subtipos fenotípicos de CMH: a forma obstrutiva, que representa 70% dos casos e que ocorre devido ao espessamento do septo ventricular e ao movimento anterior sistólico (SAM) da valva mitral, gerando um gradiente na via de saída do ventrículo esquerdo em repouso ou após manobras provocativas ≥30 mmHg, e a forma não obstrutiva, caracterizada por ausência de obstrução na via de saída do ventrículo esquerdo e representando 30% dos casos de CMH. O diagnóstico é feito a partir de uma história clínica e familiar minuciosa, exame físico com manobra de Valsalva e eletrocardiograma, que se encontra alterado em mais de 90% dos casos. O ecocardiograma é o exame de primeira escolha para estabelecer o diagnóstico fenotípico e funcional, além de ressonância magnética e mapeamento de painéis genéticos. Quando há aumento da espessura da parede ventricular ao ecocardiograma, é fundamental submeter sempre o paciente a manobras provocativas, como a de Valsalva, e ao ecocardiograma sob estresse pelo esforço físico, a fim de desmascarar obstruções latentes, que podem somente ocorrer após manobras de depleção volumétrica de aumento da pré e pós-carga (esforço físico). Cabe salientar que outras formas de estresse cardiovascular, a exemplo do uso de dobutamina, podem “falsear” obstruções dinâmicas por não aumentarem a pré-carga durante o estresse, frequentemente causando obstruções dinâmicas em indivíduos normais.

Diante de hipertrofias ventriculares, é importante estar atento às red flags, como a alta voltagem dos complexos QRS e ondas T invertidas com >5 mm ao ECG, sinais de hipertrofia ventricular assimétrica, alongamento da cúspide anterior da valva mitral e anormalidades nos músculos papilares vistos ao ECG, além de aneurisma apical e criptas mais bem avaliados na ressonância magnética cardíaca. Falando especificamente sobre a forma obstrutiva, sabemos que o tratamento até recentemente era focado apenas em alívio dos sintomas com terapias não alvo-específicas, como betabloqueadores não vasodilatadores, bloqueadores dos canais de cálcio não di-hidropiridínicos e, em alguns países, onde ainda é comercializada, a disopiramida. Para aqueles pacientes que se mantêm sintomáticos, apesar da terapia farmacológica otimizada e
com obstrução significativa (≥50 mmHg), há terapias de redução septal, como a miectomia cirúrgica ou por cateter, a ablação septal alcoólica e, mais recentemente, a ablação septal por radiofrequência, ambas por meio de cateterismo cardíaco. Entretanto, convém salientar que tais procedimentos são invasivos, não estão
isentos de complicações e nem sempre se mostram resolutivos, sem contar o fato de que, em nosso país, há poucos centros de excelência e profissionais com expertise nesses procedimentos.

Em janeiro de 2023, foi aprovado, pela Anvisa, o primeiro tratamento por via oral, alvo-específico, que atua na fisiopatologia da doença, um inibidor da miosina cardíaca chamado mavacanteno (figura 2). Sua indicação inclui pacientes adultos com cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva (CMHo) sintomática, classe funcional II e III da New York Heart Association (NYHA), com impacto na redução de sintomas e na melhora funcional e da NYHA e do remodelamento cardíaco.

Figura 2. Mecanismo de ação do mavacanteno. Bloqueio parcial das pontes cruzadas de actina-miosina (em verde e vermelho).


Na prática

A seguir, apresentamos um caso clínico de uma paciente de 75 anos, sexo
feminino, natural e procedente de São Paulo (SP), casada, dois filhos e com início recente de dispneia a esforços extra-habituais, que evoluiu quatro meses depois para dispneia aos esforços habituais. Em sequência, descrevemos seus antecedentes, dados de exame físico e detalhes de seu ecocardiograma transtorácico em repouso.


Antecedentes pessoais:

  • Tuberculose pulmonar em 2009
  • Linfoma curado em 2009
  • Discite de coluna lombar em 2021
  • Colecistectomia em 2017
  • Negava tabagismo e etilismo
  • Sem alergias medicamentosas


Exame físico admissional:

Sinais vitais: PA MSE 125x75 mmHg | FC 72 bpm | FR 14 irpm | Sat O2 95%

Geral: BEG, corada, hidratada, orientada no tempo e no espaço, sem déficits focais

Aparelho respiratório: MV presentes bilateralmente sem RA, sem sinais de desconforto respiratório, sem oxigenioterapia

Aparelho cardiovascular: RCR, bulhas normofonéticas, sem sopros audíveis, sem RHJ e sem TJ, com presença de sopro sistólico mesocárdico +/6+, que aumenta ++++/6+ após a manobra de Valsalva

Abdome:  Abdome flácido, RHA+, indolor à palpação, sem peritonismo

Membros: Pulsos presentes bilateralmente e simétricos, sem edema e sem sinais de empastamento de panturrilhas


Radiografia de tórax:

Figura 3. Radiografia de tórax em PA e perfil. A transparência pulmonar é normal e há discreto aumento do índice cardiotorácico.


Medicações de uso contínuo:

  • Clortalidona 25 mg 1x/dia
  • L-tiroxina 25 mcg
  • Rosuvastatina 20 mg
  • Fluoxetina 20 mg
  • Reposição cutânea de testosterona dos 64 aos 74 anos


Eletrocardiograma em 12 derivações:

Figura 4. Eletrocardiograma em 12 derivações demonstra ritmo sinusal. Dentro dos limites da normalidade.


Ecocardiograma:

Figura 5. Exame demonstra plano apical com foco no átrio esquerdo, com volume aumentado em 48 mL/m2 (VR <34 mL/m2), possivelmente por elevações perenes ou transitórias da pressão atrial esquerda.


Figura 6. Observa-se, ao Doppler pulsátil do influxo de via de entrada do ventrículo esquerdo, a presença de onda L, indicando aumento da pressão atrial esquerda. A velocidade da onda E, fisiologicamente, deve tocar a linha de base, ou seja, chegar a 0 mmHg, demonstrando a equalização de pressões entre o átrio esquerdo e o ventrículo esquerdo na diástole média.


Figura 7. Corroborando o achado da figura 6, nota-se, ao Doppler tecidual, a confirmação dos sinais de elevação da pressão atrial esquerda com relação E/e’= 23 (VR <8 cm/s).


Figura 8. Doppler contínuo da via de saída do ventrículo esquerdo mostra um gradiente de pico, em repouso, em 16 mmHg e, após a primeira manobra de Valsalva, de 117 mmHg.


Figura 9. Doppler contínuo da via de saída do ventrículo esquerdo evidencia um gradiente de pico em 200 mmHg após a segunda manobra de Valsalva, realizada de maneira mais eficaz.


Figura 10. Strain global longitudinal de 15,4% (R >18,0%), bem mais reduzido nas regiões de hipertrofia em parede anterosseptal-apical.


Nova diretriz brasileira

Atualizações nas diretrizes europeia e americana de cardiomiopatias foram feitas para destacar a importância de um cuidado multidisciplinar e personalizado dessa população. Também recentemente, em junho de 2024, tivemos a publicação da primeira Diretriz Brasileira de Cardiomiopatia Hipertrófica, idealizada com o grande objetivo de auxiliar médicos a estarem mais preparados no manejo desses pacientes, que ainda hoje enfrentam uma longa e sofrida jornada, além de melhor capacitá-los para o diagnóstico. Mesmo assim, a despeito desses avanços significativos no tratamento farmacológico da CMHo, muitas barreiras diagnósticas ainda precisam ser superadas para dar acesso à maior parte dos pacientes a esses modernos tratamentos disponíveis.

Recentemente, o Departamento de Imagem Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia apresentou um guia rápido para todos os médicos ecocardiografistas, a fim de facilitar o diagnóstico completo de pacientes com suspeita de cardiomiopatia hipertrófica.



Consultoria médica 

Prof. Dr. Wilson Mathias Jr
Médico máster do Fleury Medicina e Saúde
Diretor da Unidade de Ecocardiografia do InCor-HC-FMUSP

Prof. Dr. Fábio Fernandes
Diretor da Unidade de Cardiomiopatias do InCor-HC-FMUSP

Mariana Mendes Mathias
Acadêmica do 3º ano da Faculdade de Medicina de Catanduva
Aluna de Iniciação Científica do InCor-HC-FMUSP


Conteúdo em parceria com a Bristol Myers Squibb.


Referências

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ID CV-BR-2400107 – Janeiro/2025
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