Além da neuroimagem: Diagnóstico integrado radiofenotípico, histológico e molecular dos gliomas do tipo pediátrico

Alterações e mutações genéticas ajudam a predizer o comportamento desses tumores

Os tumores do sistema nervoso central (SNC) são  as neoplasias sólidas mais frequentes na infância.  Embora compartilhem características histológicas  semelhantes, os gliomas que ocorrem principalmente  em adultos (denominados “tipo adulto”) e os que  ocorrem principalmente em crianças (denominados  “tipo pediátrico”) diferem substancialmente em  termos de comportamento biológico e prognóstico.  O reconhecimento dessas diferenças clínicas tem  sido motivo de debate na literatura médica e, mais  recentemente, a demonstração de características  moleculares específicas tornou possível tal distinção.  Assim, na recém-publicada 5ª edição da Classificação  dos Tumores do SNC da Organização Mundial de Saúde  (OMS), os gliomas pediátricos se tornaram um grupo  independente pela primeira vez e foram posteriormente  subclassificados em gliomas difusos de baixo e alto grau  do tipo pediátrico.

Como conceito introdutório, as mutações do gene  da isocitrato desidrogenase (IDH) são reconhecidas  como o principal marcador genético diagnóstico e  prognóstico dos tumores gliais difusos do tipo adulto.  Tumores IDH-mutados têm menor agressividade  biológica quando comparados aos do tipo IDH selvagem,  independentemente dos achados histológicos, o que  permite, inclusive, em determinadas condições, o  diagnóstico de glioblastoma pela definição molecular.  No caso dos tumores do tipo pediátrico, tanto para os de  baixo grau quanto para os de alto grau, o IDH é sempre  selvagem e esta é uma condição excludente. Se houver  mutação do IDH, de acordo com a classificação, o glioma  é do tipo adulto, embora eventualmente possa ocorrer  em adolescentes. Nos gliomas tipo pediátrico são outras  as vias genéticas e moleculares envolvidas, algumas das  quais serão abordados nesta oportunidade.

Gliomas difusos  pediátricos de baixo grau

Ao abordarmos os gliomas difusos pediátricos  de baixo grau vale reforçar que os avanços no  entendimento das bases genéticas deste grupo  de neoplasias permitem que reconheçamos  que arquiteturas genéticas e epigenéticas estão  associadas a grupos etários específicos, regiões  cerebrais específicas e variantes morfológicas  também específicas, o que nos permite uma  melhor caracterização e classificação destas  entidades, especificamente em tumores com  fenótipos histológicos muitas vezes sobrepostos.  Trata-se de um grupo heterogêneo de lesões  cerebrais associadas à epilepsia em crianças e  adultos jovens e que exibem grande espectro de  variantes morfológicas, com alterações genéticas  que abrangem principalmente a via da proteína quinase ativada por mitogênio (MAPK) e rearranjos  MYB ou MYBL1.

A MAPK é uma das vias oncogênicas mais  frequentemente implicadas no câncer humano.


Envolve a ligação de um fator de crescimento  a um receptor tirosinoquinase que ativa vias de  sinalização que finalmente convergem ao núcleo  celular, onde estimulam fatores de transcrição  que, por sua vez, promovem a ativação de genes  promotores de crescimento e multiplicação celular  (figura 1). A proteína BRAF é um regulador crucial da  via MAPK e a mutação de seu gene é a mais comum  em gliomas de baixo grau pediátricos. As duas  principais alterações do gene BRAF incluem a fusão,  mais comumente referida como KIAA1549:BRAF,  e a mutação pontual V600E. As neoplasias desse  subgrupo, assim como outros tumores pediátricos  circunscritos, podem ser consideradas uma doença  de via única, o que as torna candidatas à terapia-alvo  no futuro.

Por outro lado, o MYB é um proto-oncogene  localizado no braço longo do cromossomo 6, cuja  função é codificar fatores de transcrição responsáveis  pela proliferação e diferenciação celular. O MYBL1  (MYB proto-oncogene like 1, localizado no braço  longo do cromossomo 8) está associado ao MYB e  tem papel semelhante.

Tumor neuroepitelial  polimorfo de baixo  grau do jovem

Ocorrendo frequentemente em pacientes jovens  em associação com atividade epileptogênica,  os tumores neuroepiteliais polimorfos de baixo  grau do jovem (PLNTY) são classificados como  grau 1 da OMS, apresentam curso clínico benigno  e parecem ser bem controlados pela ressecção  total macroscópica.

Originam-se no córtex cerebral, aparecendo como  uma lesão sólida ou sólido-cística com pouco efeito  expansivo. A maioria – 80% dos casos – localiza-se  nos lobos temporais, seguidos pelos lobos occipitais e  frontais. Os casos descritos com imagem de tomografia computadorizada (TC) mostram densa calcificação  da lesão e, do ponto de vista histológico, invariável  presença de componentes celulares semelhantes a oligodendrogliomas, com um padrão de crescimento  infiltrativo e intensa imunopositividade para CD34.  Embora tenham histologia que se assemelha aos oligodendrogliomas, os PLNTY não têm mutação IDH e  muito menos codeleção 1p/19q.

Mutações do BRAF V600E e fusões envolvendo os  receptores de fator de crescimento de fibroblastos, FGFR2  e FGFR3, estão entre as alterações moleculares mais relevantes nesse contexto. Adicionalmente, a expressão  compartilhada de CD34 pode refletir uma ligação entre  o PLNTY e outros tumores há muito reconhecidos  por sua associação com epilepsia em indivíduos  jovens, um atributo comum aos gangliogliomas, aos  xantoastrocitomas pleomórficos e, em alguns casos, ao  tumor neuroepitelial disembrioplástico (DNET). Chama  a atenção, portanto, a intersecção radiofenotípica, já  que esses são os principais diagnósticos diferenciais do  PLNTY. Não é surpresa, assim, que um padrão fenotípico  semelhante possa ser observado em lesões que  compartilhem as mesmas vias genômicas (figura 2).


Glioma difuso de baixo grau  com alteração da via MAPK

Dentre os gliomas difusos pediátricos sem característica  histológica específica, as neoplasias com alteração  da via MAPK podem ocorrer ao longo do eixo  cranioespinhal, mais predominantemente nos  hemisférios cerebrais. A convulsão é uma característica  clínica de apresentação comum. Esses tumores exibem  um padrão de crescimento infiltrativo difuso, com  fenótipo histológico de astrocitoma difuso de baixo grau  ou oligodendroglioma, mais uma vez sem mutação do  IDH, o que pode gerar confusão quanto à classificação e ao tratamento apropriado. Nesse cenário, fica claro,  mais uma vez, que a histologia se mostra insuficiente  para a correta classificação. Portanto, diante de um  paciente pediátrico com um glioma difuso de baixo grau,  é imperativa a identificação de alterações na via MAPK,  em particular a detecção de mutações BRAF ou FGFR.  Existem poucas descrições radiológicas publicadas de  tumores cerebrais que se enquadram especificamente  na categoria de gliomas difusos de baixo grau com  alteração na via MAPK e, em geral, é possível supor que  sua aparência se assemelhe a outros gliomas difusos de  baixo grau (figura 3), mas não há critérios de imagem  conhecidos que permitam sua identificação.


Astrocitoma difuso com  alteração MYB/MYBL1 

Alterações dos genes MYB/MYBL1 vêm sendo  implicadas em várias malignidades hematológicas e  neoplasias sólidas, incluindo o glioma difuso do SNC.  O astrocitoma difuso com alteração MYB/MYBL1 é um tumor glial difuso de baixo grau pediátrico  também sem mutação IDH ou da histona e, agora,  sem mutação da via MAPK. Essa lesão, incluída na  última classificação da OMS, é classificada como grau  1 e ocorre em crianças e adultos jovens, usualmente na  primeira década de vida, com alguns casos descritos  em pacientes na terceira década de vida. Alterações  do proto-oncogene MYB, seja a amplificação, seja a  deleção focal, conferem baixa agressividade biológica.  Do ponto de vista histológico, são astrocitomas  difusos e, do ponto de vista de imagem, têm o padrão  fenotípico usualmente associado a uma lesão glial de  baixo grau.

Glioma angiocêntrico 

O quarto e último tipo tumoral desse grupo,  igualmente com alteração MYB, apresenta um padrão  histológico peculiar e, algumas vezes, um padrão  radiofenotípico reconhecível: o glioma angiocêntrico.  Reconhecida desde a classificação de 2007, essa  lesão envolve tumores supratentoriais corticais de  crescimento lento, com padrão fenotípico semelhante a outros astrocitomas de baixo grau, novamente sem  a mutação do IDH. Os gliomas angiocêntricos são  classificados como grau 1 da OMS e tendem a exibir  hiperatenuação à TC, algo não usual para um glioma  do tipo adulto. As lesões têm pouco efeito expansivo  e ausência de impregnação e de restrição à sequência  de difusão. Um aspecto de imagem que merece  destaque é o eventual hipersinal espontâneo em T1  na fase pré-gadolínio, tipicamente margeando uma  área central com encurtamento de T1 e T2 (figura 4). O  impressionante padrão de crescimento perivascular, de  onde vem o nome angiocêntrico, define essa entidade.  O prognóstico após a ressecção total macroscópica  é muito bom, quase sempre com cessação completa  das convulsões.

Gliomas difusos pediátricos de alto grau

A incidência de gliomas difusos pediátricos de alto grau  é baixa, estimada em 1,1 a 1,78 por 100.000 crianças.  Apesar de pouco prevalentes, tais lesões respondem  por mais de 40% de todas as mortes por tumores  cerebrais na infância, constituindo-se, em geral, na  causa mais comum de óbito relacionado a tumores  nesse grupo. Embora as características morfológicas  dos gliomas difusos de alto grau sejam semelhantes  em adultos e crianças, as características genéticomoleculares diferem, tanto que se justifica, mais uma  vez, a separação de tais entidades.

Para a melhor compreensão desse grupo de neoplasias,  cabe uma revisão sobre as histonas, na medida em que  essas proteínas estão implicadas na gênese de parte dos  tumores gliais difusos de alto grau do tipo pediátrico.  As histonas H3 compõem uma família de proteínas  que interagem com o DNA para manter a estrutura  da cromatina e regular a expressão gênica. Sofrem  modificações decorrentes de metilações e acetilações,  que ocorrem na cauda aminoterminal, em pontos  específicos. O K27 é um deles e exemplifica a presente  discussão. Na ausência de alterações genéticas, a cauda  aminoterminal da histona está sujeita à metilação de  resíduo de lisina pelo complexo PRC2. Na presença  de alguma alteração genética da histona, há uma  translocação de lisina por metionina, contribuindo  para a gliomagênese.

Glioma difuso da linha média,  alteração H3 K27M 

O primeiro tumor pediátrico glial de alto grau foi descrito  em 2016 – o glioma difuso da linha média com alteração  H3 K27M. Trata-se do protótipo do diagnóstico integrado  radiofenotípico, histológico e molecular. Para se fazer o  diagnóstico de glioma difuso da linha média com alteração H3 K27M, deve-se identificar um tumor com alteração K27M da histona 3, ter um fenótipo glial ao estudo  histológico e estar localizado próximo a linha média com  padrão difuso de crescimento. O termo alteração substituiu o termo mutação na classificação atual desse tumor visto que outras alterações genéticas, além da mutação,  podem estar envolvidas. O problema é que tais variantes  genômicas implicam um comportamento mais agressivo dessa neoplasia, o que pode explicar, ao menos em  parte, a não infrequente dissociação entre os achados  histológicos e a evolução clínica das crianças acometidas.  

Nos tumores pontinos, nota-se o comprometimento  predominantemente anterior, muitas vezes com crescimento exofítico, com deslocamento ou envolvimento da  artéria basilar. Com frequência, há compressão e deslocamento do IV ventrículo, além de hidrocefalia obstrutiva  (figura 5). O diagnóstico da mutação H3 K27M é realizado  por estudo imuno-histoquímico, sem mutação do IDH. O  tumor compromete não apenas o tronco, mas também  pode ocorrer no tálamo, nas estruturas subtalâmicas, no  verme cerebelar, na área subcalosal e até mesmo na medula. Trata-se de lesões agressivas e de mau prognóstico,  consideradas grau 4 pela OMS, independentemente das  características histológicas.

É importante reconhecer que não existem critérios de  imagem que permitam a distinção inequívoca entre glioma difuso da linha média com alteração H3 K27M daqueles sem esse marcador genético. Vale reforçar que um  glioma difuso da ponte não é sinônimo de glioma difuso  da linha média com alteração H3 K27M. Até mesmo porque nem todos esses gliomas se encontram na ponte e,  dentre os que estão, 20% não apresentam tal alteração.



Glioma hemisférico difuso,  mutação H3 G34 

O segundo tipo de tumor glial de alto grau tipo  pediátrico é o glioma hemisférico difuso, mutação  H3 G34. São lesões supratentoriais, particularmente  nos lobos frontais e temporais, e tendem a ocorrer  em crianças mais velhas, com uma média de idade  de 18 anos, tendo um prognóstico ligeiramente  melhor quando comparadas ao dos tumores com  alteração K27M. As mutações H3 G34 ocorrem com  frequência duas vezes menor do que as alterações  H3 K27M e estão presentes em 15% dos gliomas  de alto grau em adolescentes e adultos jovens.  

Os estudos de imagem de tumores com mutação H3 G34 infelizmente não apresentam padrão  fenotípico reconhecível. Podem ter aparência de  uma lesão infiltrativa com padrão de gliomatose,  sem impregnação expressiva pelo gadolínio e  eventualmente pequenos focos de calcificações,  ou ainda podem ter aparência de uma lesão  glial de alto grau, com áreas macroscópicas de  necrose / liquefação e impregnação periférica  (figura 6). Os achados histológicos correspondem  ao de uma lesão glial difusa, usualmente com o  padrão histológico anteriormente atribuído ao  glioblastoma, com imuno-histoquímica positiva  para a mutação. Deve-se salientar, entretanto,  que o termo glioblastoma é restrito ao grupo dos  tumores gliais do tipo adulto e, portanto, não mais  deve ser usado nesse contexto.


Glioma difuso de alto grau  tipo pediátrico, H3 e IDH selvagem

Aproximadamente metade dos tumores de  alto grau do tipo pediátrico não tem mutações  da histona 3 ou do IDH e compõem um grupo  altamente heterogêneo que exibe grande variedade  de características genômicas e epigenéticas. É um  termo guarda-chuva, portanto, que requer caracterização molecular e integração de  dados histopatológicos e genéticos para fins  de diagnóstico. Vale destacar que as alterações  genéticas variam de acordo com a idade dos  pacientes e a localização dos tumores. Não há  um padrão de imagem que caracterize esse tipo  de neoplasia, mas os achados histológicos e de  imagem se sobrepõem àqueles reconhecidos como  lesões de alto grau, que recebiam o diagnóstico de  glioblastoma pediátrico, uma denominação abolida  na nova classificação.

Glioma hemisférico tipo  infantil IDH selvagem 

Por último, o glioma hemisférico infantil IDH  selvagem é um tipo recém-descrito que ocorre  em recém-nascidos e bebês com menos de 3  anos de idade, inclusive no período perinatal,  e tem um perfil molecular distinto, com  genes de fusão envolvendo ALK, ROS1, NTRK ou MET. Esses tumores possuem grandes  dimensões e são frequentemente hemorrágicos.  A caracterização de uma lesão expansiva  supratentorial no acompanhamento pré-natal  deve incluir essa possibilidade no diagnóstico  diferencial. Paradoxalmente, tais tumores  estão associados a um melhor resultado  em comparação com o dos demais tumores  gliais de alto grau, independentemente do  grau histológico.

Conclusão 

Fica cada vez mais claro que tanto a diferenciação  quanto a graduação dos tumores do SNC deixam de  ser baseadas exclusivamente em achados histológicos  e passam a levar em consideração um grande número  de marcadores genéticos e moleculares que precisam  ser mais bem conhecidos. Ainda que se mostrem  incipientes os tratamentos personalizados baseados  nesses marcadores, as alterações e mutações  observadas permitem uma melhor compreensão do  comportamento biológico das lesões e podem ajudar  o clínico na tomada de decisão terapêutica. Resta-nos  o desafio de aprofundar o conhecimento neste mundo  da genética tumoral e unir esforços na identificação  de padrões de imagem que se relacionam com os  subtipos de tumores da nova classificação.


Consultoria médica 

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