Diagnóstico molecular de anemias hemolíticas

Testes genéticos ajudam o clínico na indicação de esplenectomia

O CASO 

Paciente do sexo masculino, 19 anos, apresentava anemia com mi - crocitose, hipocromia e reticulocitose desde a infância. Os testes  hematológicos trouxeram os dados contidos na tabela abaixo.  

A avaliação prévia dos pais revelou que a mãe era portadora de  betatalassemia (BT) minor e o pai, de possível esferocitose here - ditária (EH).  A curva de resistência globular, que poderia contribuir para o  diagnóstico de EH, foi inconclusiva (exame indisponível). Ao longo  da vida, o paciente não havia tido necessidade de receber transfu - são de sangue temporária ou contínua, mas apresentara aumento  progressivo do baço. A única complicação tinha sido o desenvolvi - mento de colecistopatia crônica calculosa.  

Nesse cenário, surgiu o questionamento se, no mesmo tempo  da realização da colecistectomia, estaria indicada também a esple - nectomia, uma vez que portadores de EH têm uma maior tendên - cia de se beneficiar desse procedimento. 


DISCUSSÃO 

Principais características  

Talassemias 

As talassemias são deficiências genéticas, de herança autossô - mica recessiva, da síntese de cadeias alfa ou beta de globinas  que formam a hemoglobina. A gravidade da doença depende  do número de loci envolvidos. 

Na alfatalassemia (AT), quatro loci determinam a produção  da cadeia de alfaglobina. Quando existe apenas um locus afe - tado, a AT é mínima e não ocorre alteração no  hemograma. Se há dois loci, a AT é minor, com  microcitose e anemia documentadas, porém  sem necessidade de transfusão. Já com o aco - metimento de três loci, formam-se tetrâmeros  de betaglobina (hemoglobina H) e a anemia e a  microcitose se mostram mais intensas, mas, da  mesma forma, geralmente sem dependência  transfusional. Não há compatibilidade com a vida  quando são quatro os loci acometidos. 

Na BT, a manifestação clínica varia conforme o  excesso de alfaglobinas não pareadas com beta - globinas. Nesse caso, a condição é classificada em dependente  de transfusão, não dependente de transfusão e minor. A primei - ra se caracteriza por anemia intensa, possível eritropoese extra - medular e sobrecarga de ferro devido às transfusões. Entre suas  causas estão defeitos genéticos que geram deficiências parciais  e completas de produção de betaglobinas e associação desses  defeitos com outras hemoglobinopatias, como a C ou a E.  

Por sua vez, a BT não dependente de transfusão não provoca  complicações, embora possa haver necessidade de transfusão  diante de fatores desencadeantes, como infecções ou gravidez.  Na BT minor, por fim, ocorre apenas anemia discreta e mi - crocitose intensa, porém sem causar repercussão clínica.  

Esferocitose hereditária 

A EH caracteriza-se por redução da produção de proteínas,  que gera deficiência de associação entre o citoesqueleto e a  membrana das hemácias, as quais, consequentemente, perdem  membrana por microvesiculação e adquirem o aspecto de es - ferócitos. Cerca de 75% das variantes de EH têm transmissão  autossômica dominante, bastando, portanto, um alelo com  mutação para ocasionar a doença.  

O quadro clínico é heterogêneo e inclui anemia, microcitose,  reticulocitose e esplenomegalia. Infecções, outras doenças que  geram esplenomegalia (como a mononucleose), deficiências  nutricionais (ferro, folato e vitamina B12) e gestação desen - cadeiam piora da anemia. Ao longo da vida, a hemólise pode  progredir e gerar anemia sintomática. A esplenectomia é um  procedimento que quase sempre elimina a hemólise em casos  moderados e a corrige parcialmente em casos graves de EH.

Diagnóstico 

Testes hematológicos 

Os achados clínicos de icterícia e esplenomegalia e os achados  laboratoriais de microcitose, anemia, reticulocitose e quadro  hemolítico podem ser similares entre as anemias hemolíticas  hereditárias. A morfologia das hemácias usualmente contribui  para a investigação suspeita, mas as doenças causam quadros  morfológicos semelhantes, o que dificulta a conclusão diagnóstica. Para diferenciá-las, a curva de resistência globular  pode ajudar. Entretanto, o teste tem baixas sensibilidade e especificidade para identificar as várias formas de EH. Além disso,  outras condições alteram o exame, como anemia hemolítica  autoimune, reações hemolíticas transfusionais e outros defeitos enzimáticos, a exemplo de deficiência de glicose-6-fosfato  desidrogenase e hemoglobinas instáveis. Outros testes úteis  no diagnóstico de EH, tais como a ectacitometria com gradiente osmótico e a eosina-5-maleimida associada à citometria de  fluxo, estão indisponíveis na rotina laboratorial.  

A seu turno, as BT podem ser evidenciadas pela eletroforese de hemoglobina, observando-se a redução da proporção de  hemoglobina A1 (composta de duas globinas alfa e duas beta)  e aumento da A2 (composta de quatro globinas alfa). A proporção de hemoglobina fetal também pode se elevar.


Contribuição da genética 

O teste genético para buscar as mutações responsáveis por essas doenças é uma ferramenta que pode auxiliar o diagnóstico  das anemias hemolíticas hereditárias, especialmente quando há  suspeita de associação entre elas, e contribuir para o aconselhamento genético familiar. Pacientes com algumas condições,  como a EH, podem se beneficiar da esplenectomia como medida terapêutica.  

O painel genético realizado pelo Fleury é um teste que avalia 44 genes associados às anemias hemolíticas e que, portanto,  pode ser útil para o diagnóstico da BT e da EH, além de outras  condições:

■ Acantocitose 

■ Acidose tubular renal distal com hemólise 

■ Anemia com corpúsculos de Heinz 

■ Anemia diseritropoética congênita 

■ Anemia diseritropoética congênita tipo II 

■ Anemia diseritropoética congênita tipo III 

■ Anemia diseritropoética congênita tipo IV 

■ Anemia falciforme 

■ Anemia hemolítica Rh-negativa 

■ Betatalassemia

■ Crioidrocitose 

■ Deficiência de G6PD 

■ Deficiência de glicose-fosfato isomerase 

■ Deficiência de glutationa 

■ Deficiência de glutationa peroxidase 

■ Deficiência de hexoquinase 

■ Deficiência de HMOX1  

■ Deficiência de P5NT (pirimidina 5’ nucleotidase) 

■ Deficiência de PFK (doença de estoque de glicogênio VII/ doença de Tarui) 

■ Deficiência de PGK1 

■ Deficiência de PK 

■ Deficiência de TPI 

■ Delta-betatalassemia 

■ Eliptocitose 

■ Eritrocitose 6 

■ Esferocitose hereditária 

■ Estomatocitose 

■ Estomatocitose hereditária desidratada 

■ Estomatocitose hiperidratada 

■ Hemoglobina Lepore 

■ Hemoglobinúria paroxística noturna 

■ Meta-hemoglobinemia tipo beta 

■ Meta-hemoglobinemia tipos I e III 

■ Ovalocitose asiática 

■ Persistência hereditária de hemoglobina fetal 

■ Piropoiquilocitose 

■ Síndrome de Crigler-Najjar tipos I e II 

■ Síndrome de Gilbert 

■ Síndrome de McLeod com ou sem doença granulomatosa 

■ Trombocitopenia ligada ao X com talassemia

CONCLUSÃO 

O hematologista-assistente solicitou o painel molecular de anemias hemolíticas na tentativa de  identificar associação entre alterações genéticas  especialmente relacionadas à BT e à EH. O exame  detectou uma variante patogênica em heterozigose no gene HBB, provavelmente herdada da mãe,  a qual gerou o fenótipo de BT não dependente de  transfusão. A pesquisa das mutações relacionadas  à EH foi negativa, o que sugeriu que o paciente não  tinha associação de BT e EH. 

A esplenectomia pode ser apropriada entre os  portadores de talassemias (especialmente BT)  quando há anemia grave e persistente, demandando transfusões, retardo de crescimento, outras  citopenias (neutrófilos <1.000/mcL ou trombocitopenia <10.000/mcL) ou esplenomegalia que causa  saciedade gástrica e infarto esplênico ou, ainda,  trombose de veia esplênica.  

Uma vez que essas condições estavam ausentes  no paciente do caso avaliado, os riscos do procedimento – a exemplo de tromboembolismo venoso  e infecções graves – seriam maiores que os benefícios. A recomendação do hematologista foi prosseguir apenas com a colecistectomia, sem indicação  de esplenectomia.

Ficha técnica  

Painel genético para anemias hemolíticas Método: sequenciamento de nova geração (NGS) Genes analisados: ABCB6, ABCG5, ABCG8, AK1, ALDOA,  ANK1, ATP11C, CD59, CDAN1, CDIN1 (C15orf41), CYB5R3,  EPB41, EPB42, G6PD, GATA1, GCLC, GPI, GPX1, GSR,  GSS, GYPC, HBB, HBD, HK1, HMOX1, KCNN4, KIF23, KLF1,  NT5C3A, PFKM, PGK1, PIEZO1, PIGA, PKLR, RHAG, SEC23B,  SLC4A1, SPTA1, SPTB, TPI1, UGT1A1, UGT1A6, UGT1A7 e XK 

Amostra: sangue periférico/saliva*/swab de bochecha* 

Prazo do resultado: em até 30 dias 

*Disponíveis apenas na plataforma Fleury Genômica


CONSULTORIA MÉDICA 

Dra. Christiane Pereira Gouvea 

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Dra. Maria Carolina Tostes Pintão 

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Dr. Rogerio Pastore Bassitt 

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