Considerados biomarcadores específicos da colangite biliar primária (CBP), antes conhecida como cirrose biliar primária, os anticorpos antimitocôndria (AMA) aparecem muito precocemente no curso da doença, podendo preceder por anos ou décadas a eclosão do quadro clínico, que se inicia com sintomas inespecíficos e só exibe sinais de comprometimento hepático em sua fase tardia. Na prática laboratorial, não é incomum o encontro de AMA em pessoas com enzimas hepáticas normais (EHN), gerando uma situação incógnita.
Para uma melhor compreensão desses casos, a área de Imunologia do Grupo Fleury realizou um estudo recente em que indivíduos com EHN AMA-positivos e pacientes com CBP estabelecida foram acompanhados prospectivamente por um período de três a oito anos. Uma análise transversal inicial mostrou que a resposta imunológica na CBP estabelecida (n = 130) é mais robusta que a de indivíduos com EHN AMA-positivos (n = 82), caracterizada por maiores níveis séricos e maior avidez de AMA, bem como maior número de alvos antigênicos reconhecidos. Já na análise prospectiva longitudinal, observou-se que sujeitos com EHN AMA-positivos (n = 59) apresentaram progressão gradual dessas características imunológicas em um intervalo médio de quatro anos, o que indica que, nesse grupo, tal alteração é dinâmica e tende a se exacerbar ao longo do tempo.
Em que momento interceder?
Em busca de evidências de dano tecidual hepático nos pacientes AMA-positivos, assintomáticos e com enzimas normais, os pesquisadores valeram-se do escore Enhanced Liver Fibrosis (ELF), um exame não invasivo que funciona como alternativa à biópsia do fígado, capaz de avaliar o grau de fibrose hepática por meio da quantificação de marcadores bioquímicos no soro. O teste foi aplicado nas mesmas amostras do estudo longitudinal e, de forma significativa, evidenciou que grande parte dos indivíduos com EHN AMA-positivos apresentava não somente alteração do ELF já na primeira amostra, como também elevação gradual desse escore no decorrer dos anos.
Microscopia de um tecido do fígado num caso de colangite biliar primária.
Ademais, observou-se correlação positiva entre o aumento no ELF e a intensificação das características da resposta autoimune humoral, tanto nos níveis séricos quanto na avidez de AMA.
O paradigma atual, para os indivíduos AMA-positivos e sem evidência aparente de CBP, orienta monitoramento periódico das enzimas hepáticas e, diante de alteração expressiva da fosfatase alcalina, a biópsia do fígado. Caso sejam flagradas anormalidades sugestivas de CBP estabelecida ou incipiente no estudo anatomopatológico, o tratamento com ácido ursodeoxicólico deve ser considerado. Os achados do presente estudo, porém, revelam a existência de um processo dinâmico e progressivo que envolve alterações imunológicas e dano tecidual hepático ao longo do tempo em tais pacientes, mesmo na vigência de enzimas hepáticas normais, sugerindo uma mudança na condução clínica vigente.
“Uma proposta razoável seria a de investigar periodicamente os graus iniciais de fibrose hepática por métodos não invasivos, como o próprio ELF, a elastografia hepática, a ultrassonografia ou a ressonância magnética”, assinala o assessor médico do Fleury em Imunologia e Reumatologia, Luis Eduardo Coelho Andrade. Segundo ele, o encontro de evidências de alteração hepática indicaria a necessidade de aprofundamento na investigação com a biópsia, que, por fim, guiaria a eventual introdução terapêutica. “Tal algoritmo permite a instituição de tratamento em fases mais precoces da doença, contribuindo para uma maior chance de sucesso na prevenção da progressão da CBP”, arremata.
Esses resultados provêm da tese de mestrado da farmacêutica Danielle Cristiane Baldo e da tese de doutorado da bióloga Alessandra Dellavance, ambas do Setor de Pesquisa e Desenvolvimento do Fleury.
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