A trombocitopenia desencadeada pela administração endovenosa de heparina não fracionada (HNF) foi inicialmente descrita em 1942 por Copley e Robb durante estudos experimentais com cães. Entretanto, só foi descrita em pacientes que recebiam HNF em 1958.
A forma mais frequente (HIT tipo I) tem natureza não imune e ocorre em até 30% dos pacientes expostos à heparina. Caracteriza-se por uma supressão benigna e transitória da produção de plaquetas, que se inicia por volta do segundo dia de uso do medicamento e raramente atinge contagem plaquetária inferior a 100.000/mm3 . Seu mecanismo está provavelmente relacionado ao aumento de sequestro de plaquetas pelo baço. Em geral, não há relevância clínica e a plaquetopenia se normaliza após a suspensão da terapia.
Como manifestação mais rara, destaca-se a HIT tipo II, uma complicação imunomediada pelo uso de heparina, cuja incidência varia de 1% a 6% entre os usuários de HNF e em 0,9% entre os usuários de heparinas de baixo peso molecular (HBPM). A condição cursa com o desenvolvimento de anticorpos da classe IgG anticomplexo fator 4 plaquetário (anti-PF4)/heparina, que reagem ao receptor FcyRIIA das plaquetas, ativando-as. O fenômeno desencadeia agregação plaquetária, geração de trombina e um estado de hipercoagulabilidade que culmina com eventos trombóticos arteriais ou venosos em 20% a 64% dos casos e trombocitopenia.
As manifestações clínicas e laboratoriais ocorrem em intervalo que varia de 5 a 14 dias após a exposição ao medicamento, quando a contagem plaquetária pode sofrer redução igual ou superior a 50% em relação à contagem pré-heparina (em geral abaixo de 100.000/mm3 ). O risco de desenvolvimento do quadro varia significativamente, a depender do tipo de heparina – é maior na HNF do que na HBPM –, duração do uso e população de pacientes, principalmente os que se apresentam em estados inflamatórios e os submetidos a intervenções ortopédicas.
Diagnóstico: papel do anti-PF4/heparina e do teste funcional
Recomenda-se que todo paciente, ao iniciar a terapia com heparina, tenha uma contagem prévia de plaquetas, que precisa ser repetida após o segundo e quinto dias de tratamento. Caso se observe queda no número de plaquetas superior a 50% do valor basal, deve-se considerar a hipótese de HIT tipo II e suspender imediatamente a medicação.
Diante de suspeita clínica, recomenda-se a aplicação do escore de risco 4T, de trombocitopenia, tempo de queda das plaquetas, trombose e outras causas de trombocitopenia. Os pacientes cuja pontuação denotar probabilidade intermediária ou alta requerem investigação laboratorial.
Os ensaios sorológicos identificam a presença de anticorpos séricos anti-PF4/heparina e podem ser baseados em diferentes métodos, como enzyme-linked immunosorbent assay (Elisa), quimioluminescência, imunocromatografia de fluxo lateral e imunoturbidimetria. A sensibilidade pode variar entre os testes, embora seja alta para a detecção desses anticorpos. O mesmo não ocorre com a especificidade, que fica em 30-70%, já que eles não diferenciam a capacidade de o anti- -PF4/heparina ativar as plaquetas.
Dessa forma, para confirmar o diagnóstico, os resultados positivos pelos ensaios sorológicos devem ser avaliados pelo método funcional, que avalia a capacidade de ativação plaquetária desencadeada pelo anticorpo in vitro. Os testes funcionais apresentam especificidade de 95% e valor preditivo positivo de 89% a 100%. De qualquer modo, a associação da alta probabilidade pré-teste e de densidade óptica elevada torna o diagnóstico mais provável, mesmo na ausência de teste funcional (veja algoritmo abaixo).
Opções terapêuticas
Várias drogas podem ser utilizadas para o tratamento dos pacientes com HIT tipo II. Entre elas estão fondaparinux (disponível no Brasil), anticoagulantes orais diretos, argatroban, hirudina, bivalirudina e danaparoid. Deve-se evitar a substituição imediata pela warfarina, uma vez que essa medicação reduz os níveis séricos das proteínas C e S, além de favorecer um estado pró-trombótico em seus primeiros dias de uso. Com os níveis plaquetários voltando ao normal, no entanto, é possível introduzi-la em doses que mantenham a razão normalizada internacional (RNI) entre 2,0 e 3,0.
Quando a trombocitopenia ocorre pós-vacinação contra a Covid-19
Entre as vacinas aprovadas contra a Covid-19, a ChAdOx1 nCoV-19, da AstraZeneca, utiliza um vetor adenoviral de chimpanzé recombinante, que codifica a glicoproteína de pico do Sars-CoV-2.
Em fevereiro de 2021, foram descritos os primeiros casos nos quais a vacinação com a ChadOx1 nCoV-19 levou ao desenvolvimento de trombocitopenia trombótica imunomediada por anticorpos ativadores de plaquetas contra PF4, mimetizando clinicamente a HIT tipo II, razão pela qual passou a ser denominada vaccine induced immune thrombotic thrombocytopenia, ou VITT, na sigla em inglês. Os pacientes acometidos eram adultos jovens, principalmente do sexo feminino, e apresentaram trombocitopenia e eventos trombóticos pulmonares ou em territórios não habituais, como veia porta, esplênica e cerebral, em sua maioria graves e fatais. O quadro clínico se iniciou cerca de uma a duas semanas depois da primeira dose da vacina.
Observou-se que o soro desses pacientes ativou fortemente as plaquetas com o uso da heparina, mas também sem a medicação, geralmente com forte reatividade no teste imunoenzimático. Além disso, o soro mostrou graus variáveis de ativação plaquetária diante de tampão, o que, na maioria dos casos, foi intensificado pela presença de PF4.
O aumento da ativação plaquetária por PF4 também constitui uma característica da HIT tipo II, motivo pelo qual a utilização do PF4 tem sido proposta para aumentar a detecção de anticorpos ativadores de plaquetas em testes diagnósticos. Os estudos ainda não concluíram se os anticorpos são autoanticorpos anti-PF4 induzidos pelo forte estímulo inflamatório da vacinação ou se os anticorpos induzidos pelo imunizante apresentam reação cruzada com o PF4 e as plaquetas.
Já foi descrito que o adenovírus se liga às plaquetas e as ativa, entretanto não se sabe se a quantidade de vírus em uma injeção de vacina de 500 microlitros, administrada entre uma ou duas semanas, contribuiria para a ativação plaquetária subsequente observada nesses pacientes. Contudo, acredita-se que as interações entre a vacina e as plaquetas ou entre a vacina e o PF4 possam desempenhar um papel na patogênese. Um possível gatilho desses anticorpos reativos ao PF4 poderia ser o DNA livre no imunizante. O DNA e o RNA formam complexos multimoleculares com o PF4, que se ligam a anticorpos de pacientes com trombocitopenia causada por heparina e também induzem anticorpos contra PF4/heparina em modelo murino.
Apesar da associação de eventos tromboembólicos decorrentes da vacina, evidências crescentes sugerem que o Sars-CoV-2 é um fator de risco independente para o desenvolvimento de autoanticorpos anti-PF4, com ou sem terapia anterior com heparina. Assim, mais estudos serão necessários para estabelecer se existem grupos de risco que favoreçam o aparecimento da síndrome pós-vacina.
Vale ponderar que os testes rápidos atualmente disponíveis – imunoturbidimetria, quimioluminescência, imunocromatografia de fluxo lateral – têm baixa sensibilidade para a detecção dos anticorpos anti-PF4/heparina induzidos pela vacina. A Sociedade Internacional de Hemostasia e Trombose sugere um roteiro para investigação diagnóstica e seguimento laboratorial dos pacientes com suspeita de VITT (veja algoritmo a seguir). Deve-se destacar que os conhecimentos sobre o assunto ainda estão em desenvolvimento, de forma que tais recomendações podem mudar ao longo do tempo.
CONSULTORIA MÉDICA
Dra. Christiane Pereira Gouvea
Dra. Maria Carolina Tostes Pintão
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