Manifestações extraesofágicas do refluxo gastroesofágico

Investigação combinou testes otorrinolaringológicos com exames da área de gastroenterologia

O caso

Paciente do sexo feminino, 48 anos, procurou otorrinolaringologista devido a pigarro, principalmente noturno, e sensação de globus faríngeo, iniciados oito meses antes. O exame físico mostrou-se normal, tendo destacado apenas obesidade discreta (IMC = 31), porém a laringoscopia evidenciou edema e hiperemia discretos. Os achados, segundo o profissional que realizou o exame, sugeriam a presença de refluxo faringolaríngeo, também chamado de supraesofágico. Em função disso, a paciente recebeu a prescrição de usar inibidor de bomba de prótons (IBP) em dose dobrada por quatro meses. Como não houve resposta clínica favorável, foi encaminhada ao gastroenterologista. 

Para investigar eventual doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) associada, o gastroenterologista solicitou endoscopia digestiva alta e monitorização prolongada do refluxo por impedâncio-pH-metria, feita após interrupção do IBP por sete dias. A endoscopia, no entanto, não encontrou alterações e a impedâncio-pH- -metria apontou refluxo em níveis fisiológicos, sem ascensão proximal patológica. A medida da impedância basal noturna e a avaliação da peristalse pós-refluxo também estavam inalteradas. 

Em resumo, a paciente não apresentava sintomas típicos de refluxo (pirose e regurgitação), não respondeu ao teste terapêutico com IBP e não teve a confirmação de DRGE pelos exames realizados. Desse modo, sem evidências da participação do refluxo nos sintomas, foi reencaminhada ao otorrinolaringologista para a pesquisa de outras causas desencadeantes dos sintomas.


Imagem da laringoscopia evidencia edema e hiperemia discretos


Traçado de impedâncio-pH-metria mostra episódio de refluxo ácido, destacado em amarelo, depurado por peristalse esofágica pós-refluxo. O sensor distal registra o pH e os proximais, a ascensão do refluxo gastroesofágico. Nota-se, à direita, queda de impedância vinda do esôfago proximal para o distal, com consequente depuração química do refluxo – ou seja, peristalse pós-refluxo depurando o refluxo ácido.


A discussão

A relação da DRGE com sintomas respiratórios e otorrinolaringológicos é reconhecida há bastante tempo. Existem fortes evidências da associação do refluxo com asma, tosse crônica e rouquidão, assim como evidências de sua participação em várias outras queixas e afecções, tais como dor de garganta, sensação de globus faríngeo, disfonia, pigarro, sinusite, otite e fibrose pulmonar. 

Vários fatores estão envolvidos nessas associações, dentre os quais se destacam o contato direto do material refluído com estruturas supraesofágicas e o estímulo neurogênico reflexo. Ocorre que as estruturas supraesofágicas são mais sensíveis ao refluxo que o esôfago e têm menos mecanismos intrínsecos de defesa. Em função disso, quando expostas, ainda que de forma menos exuberante, podem apresentar lesão epitelial e, eventualmente, sintomas. 

O Comitê da Academia Americana de Otorrinolaringologia, designado para estudar as relações entre as queixas otorrinolaringológicas com o refluxo gastroesofágico e, sobretudo, com o faringolaríngeo (RFL), sugere que o diagnóstico do RFL se baseie em sintomas, achados da laringoscopia e/ou monitorização prolongada do refluxo. Além disso, preconiza a realização de teste terapêutico com IBP em dose dobrada por período mínimo de seis meses. Portanto, diante de suspeita clínica da participação do refluxo na gênese do quadro clínico, há duas opções: o teste terapêutico, nos moldes apresentados, ou a investigação diagnóstica específica do refluxo por monitorização prolongada. 

Na opinião da equipe de Gastroenterologia do Fleury, e de muitos outros estudiosos do tema, a investigação diagnóstica específica representa a opção mais adequada. Quando confirma o diagnóstico de refluxo patológico, embasa melhor o tratamento específico. Do contrário, como no presente caso, evita tratamentos empíricos desnecessários e aponta a necessidade de esclarecimento de outras causas para os sintomas. 

A laringoscopia é tida como essencial pelos otorrinolaringologistas, que consideram o edema e a hiperemia indicadores confiáveis de que as queixas se devem a refluxo. Acontece que esses achados estão presentes em até 87% dos indivíduos assintomáticos, tendo, portanto, baixo valor preditivo para responsabilizar o refluxo como causa de sintomas laríngeos. Ademais, a reprodutibilidade dos achados intra e interobservador é baixa. 

A endoscopia digestiva alta pode identificar erosões da mucosa esofágica sugestivas de refluxo, embora tais alterações sejam encontradas em apenas 20% dos pacientes com sintomas extraesofágicos atribuíveis ao refluxo. Os pacientes com esofagite erosiva tendem a ter queixas típicas predominantes, como pirose e regurgitação, e poucos apresentam queixas de RFL. Portanto, as alterações endoscópicas exibem baixo valor preditivo no que concerne às manifestações supraesofágicas de refluxo.


Para medir e caracterizar o refluxo

A monitorização prolongada do refluxo identifica sua origem e avalia sua relação temporal com os sintomas, ou seja, verifica se estes ocorrem ou não na vigência do episódio. O estudo dessa associação é bem mais fácil nos pacientes com queixas típicas, como pirose, do que naqueles com queixas atípicas, como disfonia ou pigarro, que, insidiosas e continuadas, não se relacionam diretamente com o refluxo. 

O achado de refluxo patológico, presente em 30% a 50% dos indivíduos com sintomas laríngeos, não prediz a resposta ao tratamento com IBP, mas ajuda a identificar um subgrupo de pacientes com maior probabilidade de apresentar manifestações decorrentes de refluxo. 

Há dois modos de fazer a monitorização prolongada do refluxo gastroesofágico: a pH-metria convencional, que avalia bem o refluxo líquido ácido e configura-se como uma boa opção para investigar queixas típicas, e a impedâncio-pH- -metria, que detecta todos os tipos de refluxo – ácido, não ácido, líquido, gasoso ou misto – e se mostra mais vantajosa no estudo das queixas atípicas, da tosse crônica e das eructações.

Quando não há diagnóstico confirmado de DRGE, a monitorização deve ser realizada após a interrupção do uso de drogas antissecretoras por, pelo menos, sete dias. A única situação na qual se faz o exame prolongado na vigência desses medicamentos é a suspeita de DRGE refratária ao tratamento clínico. Nesses casos, o ideal é monitorizar o paciente com impedâncio-pH-metria para identificar se os sintomas persistentes decorrem de refluxo ácido não adequadamente bloqueado ou de refluxo não ácido ou, ainda, se não são causados por esses episódios. 

Além de propiciar a monitorização de todos tipos de refluxo, a impedâncio-pH-metria analisa a capacidade de transporte do bólus pelo esôfago, a medida da impedância basal noturna, que avalia a integridade da mucosa, e a medida da peristalse pós-refluxo, que verifica a integridade peristáltica e a depuração de refluxo. Pacientes com menor poder de depuração esofágica têm maior probabilidade de o material refluído desencadear queixas supraesofágicas. 

Outro método proposto para o diagnóstico de refluxo faringolaríngeo é a pesquisa de pepsina na saliva. Contudo, apesar de promissor, ainda não há embasamento teórico suficiente para recomendar seu uso na prática clínica assistencial.



Laringite inespecífica, mostrada pela laringoscopia feita no retorno ao otorrinolaringologista.


Recomendações práticas

Uma publicação recente do Comitê para Atualização da Prática Clínica, da Associação Americana de Gastroenterologia (AGA), propõe recomendações em relação ao diagnóstico e ao tratamento de manifestações extraesofágicas do refluxo:

  1. O tratamento empírico com IBP representa abordagem válida em pacientes com sintomas extraesofágicos, com suspeita da participação do refluxo gastroesofágico. 
  2. Não existe um exame que isoladamente identifique o refluxo como causa de manifestações extraesofágicas. Portanto, os sintomas, os resultados de exames e a resposta ao tratamento devem ser considerados em conjunto na avaliação da eventual relação entre o quadro clínico e o refluxo. 
  3. A ausência de resposta ao IBP, combinada com monitorização prolongada do refluxo normal, reduz a probabilidade de o refluxo ser responsável pelos sintomas supraesofágicos.


Conclusão

O refluxo gastroesofágico e, sobretudo, sua ascensão proximal para a faringe e a laringe podem desencadear sintomas. Diante de manifestações potencialmente atribuíveis a essa condição, é necessário ter prudência e proceder a uma análise criteriosa da situação. Há duas opções recomendáveis: teste terapêutico e investigação diagnóstica específica, esta mais indicada para evitar tratamentos empíricos, eventualmente desnecessários, e proporcionar abordagem terapêutica mais embasada. 

No caso em questão, ao retornar ao otorrinolaringologista, a paciente foi submetida a uma avaliação minuciosa de possíveis causas respiratórias altas, tais como rinites e sinusites alérgicas ou infecciosas, que podem causar obstrução nasal crônica, respiração oral, gotejamento nasal posterior e, consequentemente, pigarro e globus – sintomas que mimetizam a laringite crônica por refluxo. A investigação concluiu se tratar de rinossinusite alérgica associada a uma laringite crônica, também de fundo alérgico. 

Vale lembrar que outra causa frequente dessas manifestações em adultos após a quarta década de vida, e que também deve ser considerada na investigação, são os roncos e a apneia obstrutiva do sono. 

O fato é que a avaliação otorrinolaringológica precisa abranger toda a via respiratória alta e, possivelmente, exame complementar com imagens tomográficas das cavidades paranasais, além de estudo com videonasofibrolaringoscópio flexível, já que ambos podem somar informações importantes.


Consultoria Médica

Motilidade Digestiva 

Dr. Ary Nasi 

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Dr. Nelson Michelsohn 

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Otorrinolaringologia 

Dra. Claudia Eckley 

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