O intestino humano abriga trilhões de células microbianas (bactérias, archea bactérias, vírus, fungos e parasitas) que formam uma relação simbiótica com o hospedeiro e desempenham papel vital tanto na saúde quanto na doença, pois atuam em funções importantes como digestão, regulação do sistema imunológico e produção de nutrientes e metabólitos. Já foi demonstrado que o conteúdo genético e as capacidades metabólicas dos microrganismos que colonizam o trato gastrointestinal são mais extensos do que aqueles de seu hospedeiro humano.
Assim, quando o equilíbrio da microbiota intestinal é interrompido pode ocorrer desregulação imunológica e desenvolvimento de doenças. Vários fatores podem causar o desequilíbrio da microbiota, chamado de disbiose. Há controvérsias sobre o significado exato da disbiose, simplesmente pela falta de uma descrição precisa do que é uma microbiota “normal” ou saudável. Porém, é reconhecido, mediante evidências recentes, que um estado de disbiose pode acarretar efeitos nocivos com consequências a longo prazo no desenvolvimento de distúrbios ou doenças.
Ocorrem flutuações na composição da microbiota intestinal durante o desenvolvimento do hospedeiro, do período de lactente à primeira infância, da juventude à idade adulta, incluindo período de gravidez e senescência. Porém, deve ser ressaltado que a base de uma microbiota intestinal adulta estável é estabelecida na infância, e que a colonização do trato gastrointestinal do recém-nascido e lactente nos primeiros meses de vida tem um papel decisivo na formação da microbiota. Alterações e aberrações na composição da microbiota intestinal nos primeiros dois anos de vida contribuem para distúrbios e doenças, tanto na infância como na vida adulta.
O estabelecimento da microbiota intestinal se inicia no período pré-natal e atinge um estado estável na primeira infância (2 a 5 anos de vida). Evidências recentes apontam que o feto vive em um ambiente não estéril e que a transmissão de microbiota maternofetal se inicia na gravidez. Os micróbios que colonizam o feto podem influenciar tanto o desfecho da gravidez, bem como o estado de saúde do lactente.
Após o nascimento, fatores como idade gestacional, tipo de parto, dieta (aleitamento materno versus fórmula), uso de antibióticos e condições sanitárias e ambientais interferem no estabelecimento da microbiota intestinal.
Os prematuros apresentam uma microbiota com baixa diversidade e menor número de Bifidobacterias e Bacteroides, com maior concentração de Enterococcus e Proteobacteria em relação aos recém-nascidos a termo. A concentração elevada de Proteobacteria é reconhecida como fator de risco para a enterocolite necrosante. Os lactentes nascidos por parto vaginal são colonizados por bactérias maternas vaginais e fecais, incluindo Lactobacilos e Bifidobacterias, enquanto os nascidos por cesárea são colonizados por micro-organismos originados da pele e ambiente hospitalar, e apresentam atraso na colonização por bactérias do Filo Bacterioides e menor diversidade bacteriana, o que pode comprometer a maturação do sistema imunológico.
O tipo de aleitamento também interfere na instalação da microbiota. Os oligossacarídeos do leite materno são substâncias prebióticas que favorecem uma microbiota rica em Bifidobactérias. Essas bactérias produzem metabólitos, incluindo ácidos graxos de cadeia curta, que atuam na proliferação e diferenciação das células B e T e, assim, favorecem a maturação do sistema imunológico, entre outros benefícios, com repercussão positiva na saúde do lactente e também na vida adulta.
Com a introdução da alimentação complementar, há um aumento de espécies bacterianas produtoras de butirato (Bacteroides e Clostridium). O uso de antibióticos nos primeiros meses de vida aumenta as populações de bactérias do Filo Proteobacteria e diminuipopulações de Actinobacteria. Estudos apontam que o uso de antibiótico nessa fase precoce aumenta o risco de doenças alérgicas (asma, dermatite atópica e eczema) e diabetes tipo 1 na vida adulta.
Comparado com os lactentes, a microbiota de crianças maiores é caracterizada por maior grau de estabilidade e menor variação interindividual. Na infância, a microbiota intestinal é influenciada por condições geográficas (incluindo latitude), tipo de alimentação e cultura, com diferenças entre crianças de áreas rurais e urbanas. Um estudo mostrou que crianças africanas de uma zona rural, que têm uma dieta baseada em cereais, legumes, vegetais e baixo teor de proteína animal, apresentaram uma microbiota intestinal com maior população de bactérias dos filos Actinobacteria e Bacteroidete, enquanto as crianças de uma região urbana europeia apresentaram predomínio dos Filos Firmicutes e Proteobacteria. Estudo brasileiro avaliou a microbiota intestinal de crianças saudáveis de quatro cidades distintas e os resultados foram mais próximos aos das crianças europeias de região urbana.
Como foi dito, a microbiota estabelecida na primeira infância permanece relativamente constante até a terceira idade, quando começa a sofrer alterações possivelmente relacionadas com o estilo de vida e dieta. Dessa forma, a dieta balanceada e rica em fibra, assim como a atividade física, está associada a uma microbiota intestinal diversificada e equilibrada que atua positivamente na saúde do indivíduo, enquanto a dieta ocidental, tabagismo e sedentarismo se associam com microbiota intestinal desequilibrada
e predisposição à doenças. Com o envelhecimento, há uma diminuição da diversidade bacteriana e fatores como hospitalização, residir em asilos, uso de antibióticos e outros fármacos contribuem ainda mais para a redução da diversidade bacteriana e aumento de bactérias patogênicas, com o favorecimento da infecção causada pelo Clostridium difficile.
A expansão das técnicas moleculares, como sequenciamento de genes de RNA ribossômico 16S de alta qualidade e o sequenciamento de nova geração, contribuíram muito para o conhecimento da microbiota intestinal e sua relação com distúrbios funcionais ou doenças crônicas. Há diferenças na microbiota intestinal de indivíduos com síndrome do intestino irritável e indivíduos saudáveis.
A microbiota intestinal também tem uma participação importante no desenvolvimento de doenças crônicas como obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, doenças inflamatórias intestinais, doenças hepáticas e, até mesmo, o câncer.
No câncer, a microbiota intestinal influencia a prevenção, formação, prognóstico e, também, o tratamento, pois interfere no êxito terapêutico, mediante atuação na regulação das respostas imunes e sistêmicas das imunoterapias e pode favorecer a ocorrência de efeitos adversos da quimioterapia.
A relação entre microbiota intestinal e fígado é percebida há décadas. Sabe-se, por exemplo, que os antígenos envolvidos na formação dos anticorpos anti-mitocôndria têm mimetismo molecular com a E.coli, assim como o tratamento com antibióticos pode melhorar a encefalopatia hepática. De fato, o fígado é o órgão que recebe primariamente o fluxo sanguíneo advindo do intestino, através da veia porta.
As doenças hepáticas de diferentes etiologias são importantes causas de morbimortalidade em todo o mundo, e alguns de seus mecanismos de progressão ainda não foram totalmente esclarecidos. Postula-se que alterações na microbiota intestinal estão implicadas neste processo multifatorial. Por exemplo, há estudos que sugerem relação causal entre a disbiose e o surgimento da doença hepática gordurosa (MASLD), altamente prevalente em nosso meio. A obesidade leva a uma menor diversidade da microbiota e esses pacientes têm maior frequência de sobrecrescimento bacteriano em delgado (SIBO). Consequentemente, há maior formação de endotoxinas e maior translocação bacteriana, que, ao alcançarem o fígado através da circulação portal, provocariam a ativação de citocinas, com inflamação e fibrose subsequentes. Em diferentes estudos, tem-se demonstrado a melhora de parâmetros como a resistência insulínica e produção de TNF-a com o uso de probióticos nesses pacientes.
Na doença hepática alcoólica, há uma redução da motilidade intestinal e SIBO, além da disbiose, o que também aumenta a formação de endotoxinas e translocação bacteriana. O uso de probióticos e rifaximina parece trazer benefícios para mitigar este processo. O papel da translocação bacteriana na cirrose é bastante conhecido como causa da encefalopatia hepática e peritonite bacteriana espontânea. Nesses pacientes, a redução da produção de ácidos biliares e imunossupressão levam à disbiose, causando a cascata de endotoxemia, translocação bacteriana e ativação de citocinas.
Nota
Recentemente houve mudança na taxonomia dos filos: Bacillota (anteriormente Firmicutes) Bacteroidota (anteriormente Bacteroidetes) Pseudomonadota (anteriormente Proteobacteria) Actinomycetota (anteriormente Actinobacteria).
Considerando a necessidade de familiarização com a nova taxonomia, optamos por manter os nomes previamente utilizados.
Consultoria Médica
Dra. Marcia Wehba Cavichio
Consultora médica em gastroenterologia pediátrica
[email protected]
Dra. Patrícia Marinho Costa de Oliveira
Consultora médica em gastroenterologia
[email protected]
Dra. Soraia Tahan
Consultora médica em gastroenterologia
[email protected]
Referências
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