No início do século XX, Archibald Garrod empregou o termo erro inato do metabolismo (EIM) para se referir a situações clínicas que ele acreditou serem conseqüentes a defeitos em vias metabólicas. A primeira doença estudada foi a alcaptonúria, que leva a artrite e se caracteriza, bioquimicamente, pelo aumento da excreção de ácido homogentísico. Este ácido faz com que a urina fique escura após algumas horas de contato com o ar. Ulteriormente, Garrod sugeriu que o albinismo, a cistinúria e a pentosúria também deveriam ser um EIM. Numa época em que a doença era vista como decorrente de fatores externos ao indivíduo, a idéia de que cada pessoa teria uma singularidade metabólica foi bastante revolucionária. Atualmente, o termo EIM se aplica a um grupo de doenças geneticamente determinadas, decorrente de deficiência em alguma via metabólica que está envolvida na síntese (anabolismo), transporte ou na degradação (catabolismo) de uma substância. À medida que se aprofunda o conhecimento médico, aumenta o número de erros inatos conhecidos, que hoje ultrapassam 400. Eles são estudados por um ramo da medicina laboratorial conhecido como Bioquímica Genética.
Não. Embora os erros metabólicos sejam geneticamente determinados, as doenças genéticas podem causar problemas ao comprometer, por exemplo, a estrutura da célula, sua capacidade de multiplicação ou interferir em seu processo de comunicação. Além disto, doenças genéticas podem ser gênicas (quando existe comprometimento de um único gene) ou cromossômicas (quando há alteração na quantidade de material genético, envolvendo muitos genes, com perda, acréscimo ou rearranjo de grandes segmentos de DNA). Desta forma, apenas as alterações genéticas que levem a alteração de alguma via metabólica específica são chamadas de EIM.
A maior parte dos EIM é decorrente de alteração do DNA presente no núcleo. Eles podem ser transmitidos e como um caráter de herança autossômica recessiva, ou seja, decorrente de mutação que afeta o produto de ambas as cópias de um único gene. Um número menor de doenças é transmitido de forma recessiva ligada ao cromossomo X. Nesta situação, as mulheres portadoras não manifestam a doença, que vai se expressar apenas em seus filhos homens que recebam o gene com a mutação. Finalmente, alguns poucos EIM têm herança de caráter autossômico dominante, ou seja, a presença de mutação em apenas uma das cópias do gene é suficiente para determinar o aparecimento de manifestações clínicas. O mecanismo de transmissão em cada uma destas situações está representado abaixo. Um outro mecanismo, menos comum, se dá por meio do DNA presente na mitocondria e transmitido pela mãe (vide questão 19).
Herança autossômica recessiva (progenitores portadores, risco de recorrência de 25%)
Herança recessiva ligada ao X (mãe portadora, 50 % dos filhos do sexo masculino afetados, 50% das filhas portadoras)
Herança autossômica dominante (um dos progenitores portador, risco de 50 % dos filhos serem afetados, com igual distribuição entre os sexos)
Apesar de serem eventos raros, os EIM representam importante problema de saúde e seu diagnóstico, freqüentemente, se constitui em desafio para o clínico. Em algumas populações e grupos étnicos isolados, certos erros do metabolismo, bastante raros na população geral, podem ser extremamente freqüentes. Como exemplos temos as doenças de Tay-Sachs e Gaucher entre os judeus originários do Leste europeu, conhecidos como ashquenazim, e a tirosinemia tipo I nos canadenses de ascendência francesa. A consangüinidade é um fator que aumenta consideravelmente o risco de qualquer outra doença genética de herança recessiva, inclusive os EIM.
A lista de EIM cresce a cada ano, sendo conhecidos atualmente mais de 400 defeitos metabólicos. Além disto, um mesmo EIM pode ter diferentes expressões clínicas, na dependência da atividade remanescente da enzima e do tipo de mutação genética. Para tornar o assunto ainda mais complexo, algumas doenças, dependendo do tipo de mutação, podem ter caráter dominante ou recessivo, e se manifestar com fenótipos distintos.
Os EIM podem causar sintomas antes do nascimento, no período pós-natal, na infância, no período escolar, na adolescência e na vida adulta. A idade de início e a forma de apresentação dos sintomas são importantes na orientação do diagnóstico clínico. As formas de início mais tardio de EIM costumam ter apresentações mais atípicas e são, em geral, mais difíceis de serem diagnosticadas. Embora os EIM sejam mais freqüentes na faixa etária pediátrica, eles podem manifestar-se em qualquer idade. Na medida que melhoram os cuidados médicos e os recursos terapêuticos para muitas dessas condições, aumenta a sobrevida dos afetados, que dessa forma passam a atingir a vida adulta.
Na origem de um EIM, algumas vezes existe a falta de atividade de determinada enzima ou co-fator (uma vitamina, por exemplo). Isto faz com que certas reações químicas não se processem com a velocidade e eficiência necessárias, ocorrendo um “bloqueio” de determinada via metabólica. Outras vezes, uma proteína que está envolvida no transporte de determinadas substâncias através dos diversos compartimentos celulares ou da membrana citoplasmática encontra-se deficiente, acarretando distúrbio na função metabólica da célula.
Uma vez que os EIM são decorrentes de problemas em uma via metabólica, as manifestações clínicas tanto podem ser decorrentes do acúmulo do substrato (A) de uma reação, como da falta de produto dessa mesma reação (B). Alternativamente, pode haver o acúmulo de uma substância originada de via metabólica alternativa (C).
O acúmulo de substrato da reação pode levar ao aparecimento de sintomas em conseqüência do:
• acúmulo de substrato hidrossolúvel que seja tóxico para a célula ou que interfira com seu funcionamento. É o que ocorre em alguns erros inatos de aminoácidos e de organoácidos. Estas substâncias, por serem hidrosolúveis, poderão ser detectadas em diversos fluídos corporais.
• acúmulo de substrato de baixa solubilidade em água, como acontece na maior parte das doenças decorrentes de acúmulo intralisossomal (por exemplo, nas mucopolissacaridoses e na doença de Gaucher). Nestes casos, a substância não é tóxica mas o seu acúmulo interfere com o funcionamento normal da célula. Por serem pouco solúveis em água e se depositarem somente em alguns órgãos e tecidos, sua detecção é, na maioria das vezes, difícil.
• acúmulo de substância tóxica derivada do substrato, como ocorre em algumas poucas doenças, como a galactosemia, em que há acúmulo de galactotitol, e na doença de Krabbe, com o acúmulo de psicosina.
Quando uma via metabólica está envolvida com a síntese de uma determinada substância, o seu bloqueio poderá acarretar o aparecimento de sintomas pela deficiência desta substância. É o que se observa na acidúria argino-succínica, em que ocorre deficiência de arginina e ornitina e conseqüente hiperamonemia, e em muitas doenças em que há comprometimento da oxidação fosforilativa, com redução da produção de ATP e diminuição da oferta de energia.
Sim. Todo o metabolismo celular é interligado, o que faz com que o comprometimento de uma via metabólica possa interferir com o funcionamento de outra. Na acidemia propiônica, por exemplo, existe elevação dos teores de glicina, além do aumento de ácido propiônico. Na acidemia metilmalônica, observa-se acúmulo de glicina, amônia e cetoacidose grave. É importante, desta forma, decidir se um determinado erro metabólico é primário ou secundário ao desarranjo de outras vias.
O termo doença degenerativa se aplica a um grupo de moléstias nas quais há perda de função em um órgão ou sistema. Ele é bastante empregado para se referir a um grupo de doenças neurológicas, como a doença de Alzheimer, a esclerose lateral amiotrófica e a doença de Parkinson. Em alguns pacientes, fatores genéticos contribuem de forma decisiva para o aparecimento destas doenças, mas de modo geral esse grupo de doenças não é considerado um EIM.
Existem muitas formas de se classificar os EIM e nenhuma delas é inteiramente satisfatória. A classificação pode levar em conta:
1. A organela cuja função encontra-se alterada: lisossomo, mitocôndria e peroxissomo.
2. A via metabólica que se encontra comprometida: beta-oxidação mitocondrial de ácidos graxos, degradação do glicogênico, biotransformação de aminoácidos, ciclo da uréia etc.
3. As manifestações clínicas dominantes: ataxia, sintomas extrapiramidais, coma, encefalopatia progressiva, convulsões, hepatopatia, miopatia etc.
4. O tipo de apresentação clínica: progressiva versus não progressiva, aguda versus crônica, com sintomas mantidos versus sintomas intermitentes.
Sem pretender esgotar o assunto, as principais vias cujo comprometimento pode ocasionar um erro inato metabolismo estão envolvidas com:
1. Produção de adenosina trifosfato (ATP).
2. Síntese e degradação de aminoácidos.
3. Síntese de purinas e pirimidinas (que vão formar os ácidos nucléicos).
4. Síntese de uréia.
5. Catabolismo de glicosaminoglicanos (mucopolissacárides).
6. Catabolismo de esfingolípides.
7. Síntese e degradação de glicogênio.
8. Síntese de neurotransmissores.
9. Transporte de aminoácidos, metais e açúcares.
10. Transporte de metais.
11. Transporte ou reciclagem de vitaminas.
12. Catabolismo de ácidos graxos.
13. Síntese do anel porfirínico.
14. Síntese de creatina
Muitos dos EIM foram inicialmente definidos do ponto de vista clínico e, a seguir, a nível bioquímico (seja pela caracterização de um déficit enzimático, seja pela determinação de acúmulo ou aumento da excreção de uma determinada substância) e, finalmente, a nível molecular pelo estudo do DNA. Doenças que foram bem definidas clinicamente antes de se definir a bioquímica ficaram universalmente conhecidas pelo nome dos primeiros autores a descrevê-las. É o caso de muitas mucopolissacaridoses (Doenças de Hurler, Hunter, Sanfilippo etc.) esfingolipidoses (doenças de Tay-Sachs, Niemann-Pick, Gaucher etc.), e de outras, como a síndrome de Zellweger. Nas doenças em que as definições clínica e bioquímica ocorreram simultaneamente, a característica bioquímica prevaleceu na designação da doença; é o que ocorre na fenilcetonúria, na homocistinúria e na hiperglicinemia não cetótica.
Finalmente, a existência de um elemento clínico marcante acabou sendo, algumas vezes, utilizado para nomear a doença: o cheiro característico da urina na doença da urina com odor de xarope de bordo, a responsividade a L-DOPA na distonia DOPA responsiva, etc.