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O hiperparatiroidismo primário (HPP) é uma endocrinopatia cuja freqüência ainda é subestimada em alguns centros, inclusive no Brasil. Trata-se de uma das mais freqüentes endocrinopatias (1), fato comprovado após a incorporação de dosagens de cálcio sérico à rotina de exames laboratoriais nos Estados Unidos, em alguns países europeus e no Japão, associada à valorização de níveis calcêmicos mesmo que discretamente elevados, com conseqüente complementação de investigação diagnóstica. Enfatizamos que o HPP é a causa mais comum de hipercalcemia em pacientes ambulatoriais, enquanto que a hipercalcemia humoral maligna representa a causa mais comum de hipercalcemia em pacientes internados (2).
O HPP apresenta-se na maioria dos casos de forma isolada. Mais raramente, pode estar presente na forma familiar (HPP familiar) ou ser um dos tumores que compõem a neoplasia endócrina múltipla (NEM) do tipo 1 e do tipo 2A (3). Com o aumento do número de casos diagnosticados de HPP nos locais referidos, o perfil de apresentação clínica, laboratorial e a conduta terapêutica sofreram gradativas mudanças nas últimas décadas. Nestes países, o que se observou foi uma transição de casos tipicamente sintomáticos de HPP, preponderantes nos anos de 1930, 1940 e 1950, para casos cada vez menos sintomáticos e, finalmente, chegando à condição atual onde mais de 80 a 90% dos casos diagnosticados são classificados de HPP assintomáticos (4). Tal fato levou a uma ampla discussão nos Estados Unidos e à elaboração de guidelines que tentaram normatizar a conduta e o acompanhamento a ser preconizado para o HPP assintomático, inclusive com critérios para a indicação de paratiroidectomia (5-7). Recentemente, estas diretrizes foram novamente discutidas (8) e as indicações para cirurgia incluem idade inferior a 50 anos, calcemia 1,0 mg/dL acima do limite superior da normalidade, clearance de creatinina diminuído em mais de 30% comparado com pessoas de mesma idade, calciúria superior a 400 mg/24horas e densidade mineral óssea em coluna lombar colo-femoral ou rádio distal abaixo de 2,5 desvios padrão em relação ao pico de massa óssea (T score < -2.5). Além disso, é de bom senso incluir como candidatos à cirurgia pacientes para os quais o acompanhamento médico não é possível.
Cerca de 50% dos pacientes portadores de HPP preenchem pelo menos um destes critérios, tornando-se desta forma candidatos à resolução cirúrgica. Entretanto, cada caso deve ser analisado individualmente. Lembramos que muitos pacientes referem melhora de sintomas neuro-comportamentais após a cura do HPP e obtenção de normocalcemia. O acompanhamento clínico dos pacientes portadores de HPP assintomático deve incluir a avaliação da calcemia a cada dois anos, dosagem anual de creatinina e realização anual de densitometria óssea (8).
No Brasil, a realidade ainda é de uma predominância de casos sintomáticos, sendo que muitos destes ainda chegam ao médico tardiamente e/ou têm o seu diagnóstico retardado em muitos anos apesar de terem passado por vários médicos de diferentes especialidades (9). No entanto, nos últimos anos temos observado uma lenta mudança deste perfil (10), confirmado pela existência de muitos casos diagnosticados em ambulatórios gerais de ginecologia (acompanhamento de menopausa e risco de osteoporose) e geriatria, onde a dosagem de cálcio é solicitada. Lembramos que o HPP acomete mais freqüentemente mulheres na pós-menopausa e indivíduos de mais idade, sendo uma doença cuja incidência e prevalência claramente aumentam com a idade.
Neste sentido, via de regra o HPP caracteriza-se pela presença de hipercalcemia. É importante lembrar que o controle fisiológico da homeostase do cálcio é extremamente eficiente e, sendo assim, qualquer mínima flutuação dos níveis calcêmicos deve ser valorizada. Esta regulação da homeostase do cálcio envolve a interação harmoniosa de hormônios como o paratormônio (PTH), calcitonina e vitamina D ativa. Todos os tecidos e órgãos envolvidos no controle desta homeostase (paratiróides, células parafoliculares da tiróide, rins, ossos eintestino) expressam o recentemente clonado receptor sensível ao cálcio extracelular (11,12).
O achado mais freqüente na avaliação laboratorial de um paciente portador de HPP é de hipercalcemia resultante de níveis elevados de PTH (valor aproximado de referência para PTH intacto: 10-65 pg/mL). Na presença de hipercalcemia, um nível elevado de PTH virtualmente fecha o diagnóstico de HPP. Em 85% a 90% dos pacientes portadores de HPP, os níveis de PTH estarão elevados. Entretanto, níveis inapropriadamente normais de PTH na presença de hipercalcemia são fortemente sugestivos de HPP. É extremamente raro o diagnóstico de HPP na presença de normocalcemia e tal condição pode ser justificada pela presença concomitante de níveis muito baixos de vitamina D ou em uma situação incomum, denominada apoplexia paratiroideana (13).
Outros achados laboratoriais que acompanham a secreção autônoma elevada de PTH podem incluir a presença de hipofosfatemia (fósforo sérico inferior a 2,5 mg/dL) e excreção urinária de cálcio aumentada. Esta hipercalciúria pode levar à formação de cálculos renais e nas vias urinárias. Da mesma forma, o excesso de PTH pode levar a um aumento da reabsorção óssea e, conseqüente, à doença óssea do HPP. Neste contexto, a presença de nefrolitíase e/ou doença óssea do HPP respondem pela maior parte dos casos sintomáticos. Outros sintomas de HPP estão diretamente ligados à severidade da hipercalcemia. Dificilmente a hipercalcemia do HPP é de instalação abrupta (como nos casos de hipercalcemia humoral maligna, que tem como causa, na maioria das vezes, a secreção excessiva de PTH-related protein - PTH-rp). Na maioria dos casos de HPP, com exceção de alguns casos de pacientes portadores de carcinoma de paratiróide, a elevação da calcemia é insidiosa e, muitas vezes, o paciente pode estar cronicamente "adaptado" à hipercalcemia.
A figura 1 resume como as medidas de cálcio e PTH intacto devem ser interpretadas na avaliação do diagnóstico diferencial de doenças relacionadas ao metabolismo ósseo, incluindo o HPP.
Figura 1 - Resumo dos possíveis achados na dosagem de cálcio e PTH.
Além do diagnóstico clínico e laboratorial de HPP, outros exames são complementares na avaliação de um paciente com HPP. Os marcadores séricos e urinários de remodelação óssea não são úteis para o diagnóstico de hiperparatiroidismo primário. Sua utilidade pode ser justificada no interesse em se acompanhar, de uma maneira relativamente rápida, qualquer potencial alteração na remodelação óssea em resposta a uma determinada conduta (seja ela cirúrgica, medicamentosa ou, apenas, observação clínica). A concentração de 1,25 dihidroxivitamina D pode estar elevada em alguns pacientes com HPP, mas tal dosagem tem um valor diagnóstico limitado, já que outras doenças que cursam com hipercalcemia (sarcoidose e alguns linfomas) também podem apresentar níveis elevados de vitamina D ativa.
Mesmo sem sintomas, recomenda-se a avaliação da função renal em pacientes com HPP, a realização de um ultra-som renal e de vias urinárias e de uma densitometria óssea. Classicamente, o paciente com HPP tem uma perda mais acentuada de osso cortical (predominante no colo do fêmur) do que trabecular (predominante na coluna lombar) (14). Entretanto, temos observado que em casos muito sintomáticos e na presença de perda óssea acentuada, ambos os sítios são acometidos (15). Vale ressaltar que a recuperação de massa óssea após resolução cirúrgica do HPP é evidente, especialmente nos pacientes mais jovens e naqueles com doença óssea mais grave (16).
Exames localizatórios de imagem têm utilidade restrita aos casos de insucesso cirúrgico ou de recidiva da doença. Neste sentido, os exames disponíveis incluem a ultra-sonografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética e mapeamento com tecnécio-sestamibi. Nenhum destes exames apresenta uma sensibilidade ótima (girando em torno de 60%), especialmente em casos onde os níveis de PTH são pouco aumentados, o que geralmente está associado a uma ou mais paratiróides de volumes pouco aumentados. Recentemente, foi demonstrado um ganho significativo de sensibilidade com a associação de ressonância e sestamibi (17). Vale enfatizar que a experiência anterior do cirurgião em cirurgias de paratiróide é essencial para que o sucesso na primeira abordagem cirúrgica seja alcançado.
Os achados anátomo-patológicos na maioria dos casos de HPP (80-85%) correspondem a adenoma único de paratiróide. Cerca de 15% dos casos são hiperplasia das quatro glândulas e menos de 1 a 3% são portadores de carcinoma de paratiróide (3,9). Clinicamente, nada distingue ou é mais sugestivo de adenoma ou de hiperplasia. Entretanto, o achado cirúrgico de apenas uma glândula aumentada de volume é obviamente muito sugestivo de adenoma, o que resulta na exerese apenas desta glândula aumentada. Por outro lado, quando as quatro glândulas parecem uniformemente aumentadas, é recomendada uma paratiroidectomia a 7/8. Nos raros casos de carcinoma de paratiróide, a hipercalcemia geralmente instala-se mais rapidamente e o nível de PTH intacto geralmente é superior a 1.000 pg/mL. Em casos com forte suspeita clínica, é recomendada uma extensa abordagem cirúrgica para verificação e retirada de linfonodos acometidos. O prognóstico é pobre na maioria dos pacientes portadores de carcinoma de paratiróide (3,18).
Uma atenção especial deve ser reservada aos casos com doença óssea severa em programação cirúrgica. Nestes casos, a fosfatase alcalina geralmente encontra-se muito elevada, denotando a remodelação óssea aumentada. Em razão disso, é muito provável que, após a remoção cirúrgica da(s) paratiróide(s), este paciente desenvolva a chamada "fome óssea", caracterizada por uma hipocalcemia de instalação rápida no pós-operatório. Profilaticamente, recomenda-se a prescrição de cálcio e vitamina D, que podem ser iniciados na véspera da cirurgia. Por último, gostaríamos de destacar o papel das dosagens de PTH no intra-operatório por meio de enasios para a medida de PTH em curto espaço de tempo. Trata-se de dosagem de PTH antes da remoção da(s) glândula(s) paratiróide(s) suspeita(s) e monitorização do PTH logo após a exerese cirúrgica. Levando-se em conta que a meia-vida do PTH é muito curta (de dois a quatro minutos), tal procedimento pode ser extremamente útil para que o cirurgião seja informado em tempo sobre o eventual sucesso da cirurgia. Em média, os resultados destas dosagens estão disponíveis 20 minutos após a coleta (19).
Nos casos que não podem ser operados, é importante uma monitorização periódica da hipercalcemia. Muitas vezes, é necessária a introdução do controle da hipercalcemia por meio de hidratação vigorosa seguido da administração de diurético de alça e medicações como calcitonina ou bisfosfonatos.
Em conclusão, ressaltamos que o diagnóstico laboratorial do HPP reside basicamente na valorização de níveis de cálcio aumentados (mesmo que discretamente aumentados). Uma vez detectada a hipercalcemia, o passo seguinte é a dosagem de PTH intacto. Os demais exames mencionados são complementares para a melhor caracterização clínica de possíveis complicações do HPP (20).
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